Esse é o título de um livro de fotografias de Brasília. O autor-fotógrafo é Truman Macedo, cearense-brasiliense de longa data.
O livro é um presente para os brasilienses - nativos ou adotivos. A câmera de Truman Macedo captura imagens vastas do cerrado - mato e céu, árvores e flores, pássaros e outros bichos. E vai colocando tudo isso em perspectiva quando invade o espaço urbano, com um olhar instigante, ora amoroso, ora crítico, do cotidiano da cidade, que espreme a natureza em espaços de confinamento dos quais ela parece sempre a ponto de escapar.
Logo de início, o autor estabelece o contraste como componente importante de seu trabalho fotográfico, ao contrapor a amplidão do cerrado - sob a inscrição "O azul sereno do nosso céo." (L.F. Cruls, 1892) e a limitação opressiva do famoso "Buraco do Tatu", trecho subterrâneo da Rodoviária de Brasília, também denominado "Marco Zero" da cidade. E o contraste valoriza todas as fotos: entre o claro e o escuro, entre o nítido e o embaçado, entre o verde e as cores vivas de flores e pássaros, entre o céu e o concreto dos monumentos, entre o distanciamento e a proximidade dos detalhes.
Junto com as fotos, o livro traz apresentação e poemas de Nicolas Behr, cuja poesia nos faz ver a Brasília concretamente monumental como um espaço que se humaniza e acolhe aqueles que nela habitam, que nela assistem ao teatro da política, que nela convivem com a diversidade, a pluralidade e os dramas produzidos pelas agudas desigualdades e diferenças.
que cidade é essa
que vejo - espelho -
do avião?
que cidade é essa
que sangra - vermelho
da cruz?
que cidade é essa
que amo
mais do que eu?
(Nicolas Behr)
Na organização das fotos no livro, Truman Macedo utiliza também trechos dos textos que registram o processo de escolha do território que sediaria a capital do Brasil, como os da Missão Cruls (primeira e segunda) e da profecia de Dom Bosco. São fragmentos de registros das preocupações que remontam ao século XVII, quando João Fernandes Vieira sugere que os habitantes de Pernambuco construam sua sede em terras "as mais longes do mar" - essa que acaba por dar título à linda homenagem desse cearense a Brasília.
O livro intercala as fotos com explicações escritas pelos próprios idealizadores de Brasília, como é o caso do texto de Lúcio Costa, que nos faz entender a interação das quatro escalas urbanas que compõem a cidade: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. Quantos de nós, brasilienses nativos ou de coração, conhecemos essa explicação?
As fotos de Truman Macedo ora velam, ora desvelam ângulos conhecidos dos brasilienses. Ora desvendam, ora propõem adivinhações, como esta:
Em outros momentos, vemos a vida de dentro de situações prosaicas do cotidiano, quando então temos a certeza de que esta cidade se constrói e se constitui por seres humanos, muitas vezes maltratados pela precariedade do transporte público. Ainda assim são vistos poeticamente pela lente amorosa de Truman Macedo:
O fotógrafo flagra tanto a natureza quanto as estruturas de concreto, quanto as pessoas; flagra tanto os monumentos quanto os detalhes irrelevantes deles, atribuindo-lhes clareza e importância no todo monumental da capital brasileira:
Enfim, "As mais longes do mar" é um belíssimo livro sobre Brasilia, seus ambientes, sua natureza, seus homens e mulheres, seus percursos e trajetórias, suas particularidades arquitetônicas e urbanísticas. Tudo isso é visto pela lente sensível e carinhosa de um habitante que ama sua cidade.
Se você quiser informações sobre como adquirir este belo livro, faça contato comigo na caixa de comentários.
PEDRA - PALAVRA - VOZ
Este é um espaço para registro de impressões e reflexões sobre o que se vive, o que se lê, o que se vê, o que se sente.
terça-feira, 1 de outubro de 2013
terça-feira, 8 de janeiro de 2013
O tédio, a mídia e o nojo
Sabe quando você tem a sensação de que alguma coisa, que sempre fez por prazer e interesse, de repente virou obrigação e perdeu a graça? É o que está acontecendo comigo, em relação aos noticiários de televisão. Todos os dias, talvez por força do hábito, assisto a uns três programas de notícias. Mas isso tem se tornado uma atividade cada vez mais entediante, quando não indignante.
Vamos aos porquês.
Nos dois últimos anos, passei um total de quase seis meses fora do Brasil. Tive a oportunidade de conhecer a imprensa de alguns outros países, inclusive aqueles da Europa no início da atual crise econômica. Vi ali o mesmo processo de manipulação da informação, a imprensa como cúmplice das autoridades políticas que impuseram aos povos espanhol e português o amargo pacote das tais medidas de austeridade, exigidas pela Troica - Banco Central europeu, FMI e União Europeia - para que esses países recebessem ajuda financeira. "Troica" era a palavra mais ouvida nos noticiários, que convocava seus "especialistas" para afirmar que as tais medidas eram necessárias para o enfrentamento da crise do capitalismo. Bem, isso foi em 2011 e até hoje os portugueses e espanhóis, arrochados pela austeridade fiscal e monetária de seus governantes, não lograram superar a tal crise.
Emissários da Troica: já vimos muitas vezes essa cena no Brasil...
Ano passado, estive na Austrália. Coincidência: o período era de eleições e a primeira-ministra, Julia Gillard, concorria à reeleição. Não vi ataques ferozes da mídia a ela, mas sim o debate de temas caros aos australianos, que eram colocados em pauta pela candidata ou por seu opositor. Vejam a diferença: pelos candidatos. A partir deles, toda a mídia discutia o tema pautado. E essas discussões foram evidenciando a inconsistência das propostas neoliberais do candidato da oposição, que terminou perdendo a eleição. Isso porque os australianos quiseram garantir a continuidade das políticas sociais implementadas pelos trabalhistas. Conversei com mais de uma pessoa que elogiou as medidas assistenciais implantadas pelo governo, de proteção aos mais pobres, aos desempregados e aos aposentados. E várias outras, como por exemplo aquelas destinadas aos jovens que iniciam a vida de trabalho.
Mas. (Sempre há um "mas"...)
Tudo isso me ocorre hoje, depois de assistir pela enésima vez a uma matéria sobre o risco de racionamento de energia elétrica aqui no Brasil. O estardalhaço da mídia - minha avó diria "o frege" - quer me convencer de que VAI HAVER o tal racionamento. E, de quebra, a tão propalada redução nas contas de luz não vai ocorrer. Vi isso na Globo, na Band e na Record. Os "especialistas" convidados são sempre os caras que endossam as teses dos noticiários. A Band chegou ao cúmulo de entrevistar um diretor da CPFL - empresa paulista que se opôs ao projeto do governo federal de redução das tarifas de energia.
Miriam Leitão faz escola: a prática da urubulogia está se disseminando na mídia brasileira. Proliferam os jornalistas metidos a entender de todos os assuntos. Muitos deles fazem cursos de pós-graduação e, como prêmio, recebem bolsas de estudos do Instituto Milenium e da Sociedade Interamericana de Imprensa, bastiões do pensamento da direita latino-americana (se é que se pode chamar toda essa tosquice intelectual de "pensamento"!) Na América Latina, a mídia, de fato, se transformou em partido político, que leva a reboque políticos de oposição aos governos eleitos democraticamente. No momento, a urubulogia concentra suas agourentas previsões na situação venezuelana: alguns jornalistas nem disfarçam o desejo de que Hugo Chávez morra de vez, antes de tomar posse na presidência da Venezuela.
Então. Passada a preguiça, o "boring", vem o nojo - no sentido espanhol da palavra. Por que eu tenho de aturar o Bóris Casoy babando maus agouros no horário nobre? E o arzinho de revolta alarmante do William Bonner? Ora pois!
Que nojo essa mídia e seus colunistas me provocam - com poucas exceções! É esse nojo que acende minha indignação e renova minha disposição de continuar lendo e combatendo essa cambada de gente antipovo, antiBrasil, antidemocracia!
quinta-feira, 6 de dezembro de 2012
Reparação (simbólica) histórica
Hoje o clima no plenário da Câmara dos Deputados foi de emoção. A sessão solene de restabelecimento simbólico dos mandatos dos deputados federais cassados pela ditadura militar reuniu naquele espaço figuras importantes da história recente brasileira. Você pode ver um pouco da solenidade aqui nesta matéria.
As famílias dos que já morreram, emocionadas, aceitaram a reparação. Os que ainda vivem, após receber o diploma e o bottom da Câmara, ali se sentaram, recuperando talvez a memória do tempo em que tinham mandato popular para estarem naquele espaço. Mandato que foi usurpado pelo regime militar. O discurso da brilhante deputada Luiza Erundina foi emocionante e tão mobilizador, que me renovou a disposição para continuar oferecendo minha pequena contribuição para a luta por justiça e pela punição dos que cometeram crimes sob respaldo do estado autoritário.
Foi também inaugurada a exposição Parlamento mutilado: Deputados Federais cassados pela ditadura militar de 1964, no corredor que liga o plenário aos anexos da Câmara. Ali se veem fotos, trechos de músicas e textos alusivos ao abuso e às arbitrariedades cometidas pelos militares no período 1964-1985.
No hall de entrada que antecede o corredor das comissões, foi instalado o magnífico painel do grande artista Elifas Andreato, no qual se representa a perversão das sessões de tortura, que se tornaram banais nos porões do regime militar.
quinta-feira, 22 de novembro de 2012
Um quase retorno
Do site da CartaCapital:
Política
Willian Vieira
Ditadura
22.11.2012 08:56
Memória reempossada
Em
6 de dezembro, exatos seis dias após completar 78 anos, a deputada
federal Luiza Erundina (PSB) pisará no plenário da Câmara dos Deputados
para mais um capítulo da batalha de ordem política e pessoal que a move –
mas, desta vez, com uma ponta de ironia nos argutos olhos verdes. Em
cerimônia planejada nos mínimos detalhes, a casa devolverá
simbolicamente, em uma sessão de posse embalada pelo Hino Nacional
interpretado por um cantor lírico, o mandato aos deputados cassados
durante a ditadura. Os parlamentares, ou suas famílias, receberão o
diploma e o broche típicos. “É uma forma de a Câmara devolver ao povo o
mandato que os torturadores usurparam de seus representantes”, diz
Erundina, plácida, na manhã da segunda-feira 12, em seu gabinete
político em São Paulo. “E é o mínimo que podemos fazer agora, enquanto
não aprovam a mudança na lei da anistia.”
Erundina não desiste. Até a terça-feira 13, o
presidente da casa, Marco Maia, não havia dado o aval à sessão solene
pensada por ela e requerida pelo primeiro-secretário Eduardo Gomes
(PSDB-TO). Segundo a assessoria do presidente, “o pedido chegou tarde”
e, “por questão de calendário”, foi decidido “priorizar a votação de
matérias”. Maia não confirmaria quando ou “se” o evento ocorreria. “Três
horas de cerimônia iriam atrapalhar tanto? Justo quando o País faz um
esforço para buscar a verdade?”, rebateu Erundina, um dia depois, já em
Brasília e prestes a discursar no ato organizado pela OAB para
homenagear os advogados de presos políticos – “para o qual a Câmara não
liberou um centavo, nem para as passagens dos homenageados”, diz. Ela
então subiu nos tamancos: na OAB, denunciou “a má vontade que a casa
sempre demonstrou em investigar sua história”. Na quarta 14, a
confirmação da data do evento chegou.
São poucos os políticos que conseguem incomodar tanto o Legislativo e
Executivo ao mesmo tempo. Não apenas a deputada não coopera com o
esforço do governo de agradar aos dois extremos do espectro ideológico
com um consenso forjado por paliativos como desafia o silêncio do
Congresso sobre o tema mais espinhoso da história brasileira. A sessão
simbólica é só um exemplo. Inconformada com a decisão do Supremo
Tribunal Federal de 2010, por exemplo, que rejeitou o pedido da OAB por
uma revisão na Lei da Anistia que desconsiderasse como “crimes conexos”
tanto a ação de agentes da repressão quanto a da luta armada, a
parlamentar decidiu, no ano passado, redigir um projeto. Pretendia
alterar o artigo 1º da lei de 1979. A mudança retiraria da anistia os
agentes públicos, torturadores pagos pelo Estado para sequestrar,
torturar e assassinar cidadãos, e permitiria sua punição, “o que
aconteceu em qualquer país decente, menos aqui”. Mas o PL foi apreciado
pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa, onde caiu nas mãos do
conservador Hugo Napoleão (DEM-PI), que o rejeitou, e logo nas de Vitor
Paulo (PRB-RJ): a decisão foi idêntica. O projeto estacou, ignorado, na
Comissão de Constituição e Justiça.
Quando a Comissão Nacional da Verdade foi anunciada como a panaceia
dos males históricos do País, Erundina saiu novamente ao ataque. No
primeiro artigo do texto sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em
novembro de 2011, viu no dever de “promover a reconciliação nacional” um
insulto às vítimas. “Que reconciliação é essa? Vai reconciliar
torturadores com perseguidos políticos, em vez de puni-los? A anistia
foi uma farsa. O poder estava com os militares. Sem mudar a lei, a
comissão vai ser a continuação da farsa.” Como a lei parece longe de ser
mudada, a deputada trilha um caminho próprio. Para pressionar o
Congresso e o governo a investigar os agentes da repressão, criou a
Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça. Foi acusada de querer
“competir” com a comissão do Executivo. Ignorou. De oitivas de
depoimentos, como a do ex-agente de informação Marival Chaves, a
audiências com testemunhas da guerrilha do Araguaia, a subcomissão tem
enchido pastas com documentos. “Mas não queremos ficar só no nível da
memória. Queremos processos judiciais.”
Figura histórica na luta por desmascarar os
partícipes da ditadura, a paraibana de Uraiúna esteve à frente da
investigação que se seguiu à descoberta da vala clandestina no Cemitério
de Perus, em São Paulo, em 1990. À época, criou uma Comissão de
Acompanhamento das Investigações, para fiscalizar a ação da polícia e
colaborar com a CPI da Câmara Municipal. Um paralelo com a atual
situação das comissões da verdade é inevitável. Agora, ela quer apurar
as violações de direitos humanos com motivação política contra
parlamentares, caso do deputado do PTB Rubens Paiva. Expoente da
investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou o
recebimento ilícito de dólares por generais ligados ao golpe, Paiva não
só foi cassado como, em 1971, foi levado por militares. O Exército
divulgou uma nota fantasiosa, na qual atribuía o sumiço a um resgate dos
companheiros “terroristas”. O que as testemunhas disseram depois é que
ele morrera entre as torturas no DOI-Codi na “Casa da Morte” em
Petrópolis. Seus restos mortais jamais apareceram.
Além dos desaparecidos, é justamente o papel institucional do poder
legislativo durante a ditadura o que vem à tona com as investigações da
subcomissão presidida por Erundina – e, provavelmente, só com elas. “O
Poder Legislativo foi vítima e cúmplice da ditadura”, diz a deputada,
peremptória. “Vítima porque foi fechado três vezes pelos ditadores.
Cúmplice porque não reagiu, porque os que lá estavam não tinham
compromisso com a democracia, e porque aprovou essa lei manca de
anistia. A verdade é que nunca se fez nada.”
A história do Congresso durante a ditadura foi pouco feliz. Em 9 de
abril de 1964, a junta militar que assumiu o poder no Brasil após o
golpe decretou o que chamou de “Ato Institucional”. Além do anúncio de
uma “revolução” que instaurasse o “poder constituinte” por meio das
armas, o ato anunciava a cassação de 46 deputados federais: gente como
Plínio de Arruda Sampaio, relator da Reforma Agrária, Leonel Brizola,
articulador da Frente Ampla, e o próprio Rubens Paiva. O Congresso foi
alijado de suas prerrogativas mais básicas, mas era só o começo. Em
1966, o general Castello Branco decretou o AI-2, que acabava com os
partidos e agrupava o espectro político em duas legendas (Arena e MDB).
Outros cinco deputados foram cassados e o Congresso, fechado por um mês.
O AI-4 obrigaria os deputados a se reunir às pressas e encenar a
aprovação de uma nova Constituição, que entraria em vigor em 1967 com a
posse de Costa e Silva, “candidato eleito” de forma indireta por 294
votos pelo mesmo Congresso arenista.
Não que todos os parlamentares sobreviventes à
limpeza ideológica da ditadura se coadunassem com os desmandos
militares. Num ato de ousadia incomum à cordata conduta que mantinha, a
Câmara se negou, por exemplo, a conceder a licença pedida pela
Presidência para que o deputado Márcio Moreira Alves fosse processado
pelo discurso no qual questionara até quando o Exército seria
“valhacouto de torturadores”. Foi um momento de orgulho, logo abafado
quando o AI-5 entrou em vigor: a Constituição foi revogada e o
Congresso, fechado por mais de nove meses. Uma terceira suspensão dos
trabalhos parlamentares ainda se daria entre 1º e 14 de abril de 1977,
espécie de pá de cal na imagem da instituição. E em 1979, a controversa
lei da anistia de “dupla mão” foi aprovada. Um estrago que acabou
soterrado com um silêncio, para muitos, incômodo.
“Quando o STF negou a revisão da lei da anistia, usou como argumento
principal o fato de o Congresso ter aprovado a lei”, afirma Erundina.
“Pois se a Câmara aprovou essa lei, é prerrogativa da própria Câmara
aprovar a revisão da lei. E, enquanto não aprovam, precisamos lembrar a
memória dos poucos que se posicionaram contra a ditadura. É nossa
responsabilidade. Não podemos fugir dela.” Uma história que deve ser
contada também por uma exposição de fotos sobre o período e um painel do
artista Elifas Andreato nos moldes de uma “Guernica brasileira”. Um
livro com biografias dos cassados será lançado.
Crítica da Comissão da Verdade pelo seu prazo curto
(dois anos) e raio de ação reduzido, Erundina insiste nas comissões
paralelas que pipocam nos estados e municípios e na que ela mesma
preside. Longe das pressões existentes no Executivo, a deputada se
guarda o direito (e o dever) de lutar no Congresso para expor as
entranhas da ditadura. “Não queremos produzir mais um relatório
encadernado para guardar no Arquivo Nacional, que é o que vai acontecer
com a Comissão da Verdade. Queremos processos judiciais, queremos punir
os torturadores”. Só isso pode evitar que essa “página infeliz da nossa
história” se transforme em uma “passagem desbotada na memória das nossas
novas gerações”, em uma paráfrase de Chico Buarque. “Ou se faz isso
agora ou não se fará nunca mais. No Congresso, há forças que não têm
interesse em resgatar a história. E no governo… eu sinceramente esperava
outra postura da presidente Dilma. É uma pena.”
sexta-feira, 30 de março de 2012
A face civil da ditadura empresarial-militar
Tenho visto manifestações patéticas dos militares de pijama, no afã de comemorar os 48 anos do golpe empresarial-militar de 1964. Chegam a dizer que salvaram o Brasil de se transformar em uma ditadura comunista. Seria risível se este pretexto não tivesse precipitado o país em período de trágico retrocesso no seu desenvolvimento econômico, social, cultural e democrático.
Hoje é impossível rir do primarismo que regeu - e rege ainda - os argumentos dos defensores do período de exceção, que se transformou rapidamente em regime de força, perpetrando contra seus cidadãos o terrorismo de estado e todas as desgraças dele decorrentes. Gosto de lembrar que não havia luta armada enquanto não houve golpe dentro do golpe, que recrudesceu as relações entre o governo das armas e a sociedade civil que ele, teoricamente, deveria preservar e defender.
A parcela da sociedade brasileira que logo se configurou como a mais beneficiada pela ditadura foi a dos empresários. A dos ricos, que fizeram dos militares, seduzidos pelas promessas do poder, meros capachos executores de ordens para manter os movimentos sociais aniquilados, enquanto seus luminares colocavam em prática uma política econômica baseada no endividamento externo e na concentração da renda.
Delfim Neto, superministro civil da ditadura empresarial-militar, ouve atentamente o discurso de Costa e Silva
Contando com a cumplicidade dos meios de comunicação, o regime ditatorial empresarial-militar foi mantendo o povo alienado e alheio aos assassinatos dos opositores que ousaram se organizar em movimentos armados, assim como nos movimentos estudantil e do operariado. Os trabalhadores rurais, que vinham se organizando nas Ligas Camponesas, liderados por Francisco Julião, entre outros, foram alvos de perseguições e assassinatos, não pelos homens de baioneta em riste, mas pelas milícias contratadas pelos coronéis do latifúndio.
A imprensa teve papel preponderante no controle do imaginário durante os governos ditatoriais. Basta lembrar que as vans do jornal Folha de São Paulo eram usadas para, além de carregar os pacotes de jornais distribuídos pela cidade, transportar os prisioneiros políticos antes e depois das sessões de tortura a que eram submetidos pelo DOI-CODI, DOPS e outros órgãos de repressão aos movimentos políticos.
Também gosto de lembrar - não que isso seja prazeroso - que havia civis a serviço das forças de repressão, infiltrados nos movimentos estudantis, nos movimentos operários, nos movimentos camponeses, nas mesas de botecos, nos bancos das universidades, dedurando estudantes, professores, sindicalistas... Foi fácil estender a deduragem aos desafetos, que não necessariamente tinham qualquer atividade política, mas cometeram o "erro" de desagradar este ou aquele policial civil, este ou aquele colaborador do regime.
Gosto de lembrar também - e isso não é prazeroso, mas me dá uma remota sensação de que a justiça poderia ser feita às vítimas da ditadura - dos empresários que não apenas apoiaram o golpe, mas também o financiaram. Um deles, mostrado no documentário Cidadão Boilesen , além de dar dinheiro para a famosa Operação Bandeirante (OBAN), tinha prazer quase sexual em assistir às sessões de tortura.
Gosto de lembrar ainda - e isso me entristece até hoje - da vala clandestina descoberta no cemitário de Perus, em São Paulo. Com certeza não estavam ali enterrados corpos de militares, mas de militantes de oposição, mortos covardemente, por tortura e/ou execução.
Gosto de lembrar - e isso me acende e renova a indignação ao longo deste quase meio século de impunidade - que, enquanto tudo isso acontecia, enquanto numerosos civis trabalhavam laboriosamente nos porões, junto com os também numerosos militares de variadas patentes, outros civis aceitavam comandar ministérios, como Delfim Neto - a montanha que pariu o rato do "milagre brasileiro" -, Armando Falcão, Ricardo Fiúza, Alfredo Buzaid, Leitão de Abreu, Ibrahim Abi-Ackel, Milton Campos, Karlos Rischbieter, Reis Veloso, Sinval Guazelli, Cirne Lima, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos, Amaury Stabile, Ester de Figueiredo Ferraz, Otávio Bulhões, Petrônio Portella, Ney Braga, Jorge Bornhausen, entre muitos outros.
Houve também colaboradores que não ocuparam cargos, mas deram sustentação à ditadura civil-militar no Congresso Nacional, como Francelino Pereira, Antônio Carlos Magalhães, Bonifácio de Andrada, José Sarney, Flávio Marcílio, Luiz Vianna Filho, Aureliano Chaves, Magalhães Pinto, Arnon de Melo, Nelson Marchezan, Célio Borja, Tarso Dutra, Nilo Coelho, Rondon Pacheco, Paulo Maluf - a lista é longa!
Muitos desses colaboradores de terno-e-gravata circulam desenvoltos, ainda hoje, pelos corredores do poder. Os outros, menos elegantes, escondem-se no anonimato e, de vez em quando, topam com alguém que os reconhece e os aponta como torturadores. Correm a esconder-se como ratos, sabedores de que é inútil negar seu passado escabroso.
Os militares, historicamente alinhados com a classe dominante brasileira, defenderam seus interesses, contra aqueles da maioria do povo trabalhador, ao perpetrar o golpe de 64. Colocaram-se, mais uma vez, além de capachos dos interesses dos EUA na América Latina, como bucha de canhão da elite nacional, diretamente interessada em manter com seu chamado "irmão do norte" as melhores relações.
Por tudo isso, tendo em vista proximamente a instalação da Comissão da Verdade, defendo que sejam investigados todos os criminosos que permanecem impunes, militares e civis.
sábado, 3 de março de 2012
O passado é pedagógico III (e último!)
Alguns dias das férias, eu os passava na casa de minha avó materna, que morava no outro lado da cidade. Ela era dessas pessoas que sabem como fazer um neto ou uma neta feliz. Tinha comigo conversas longas e me deixava livre para brincar em um córrego que cortava a rua, junto com outras crianças dali. Todos nós andávamos descalços, brincávamos na terra e na água, jogávamos bola, jogávamos pedras no mato com estilingue, subíamos em árvores, soltávamos pipa e jogávamos bolas de gude. De tardinha, banho tomado, ficávamos ouvindo as conversas dos adultos nas varandinhas das casas ou na rua mesmo.
Meninos brincando - Candido Portinari
Uma vez, ao chegar para as benditas férias, os meninos e meninas da vizinhança só falavam de uma nova vizinha. A mãe era brava e a filha era linda como um anjo, eles nunca tinham visto mais bonita. A menina quase não saía de casa. Só ia para a escola de mãos dadas com a mãe, só voltava para casa com ela. Tinha a mesma idade que eu – uns dez anos. Loira, cabelos lisos e longos, olhos muito azuis, narizinho de boneca de louça... Ficava perto da janela e nós víamos, da rua, a mãe penteando-lhe os cabelos.
Um dia me enchi de coragem e, chegando perto da janela, falei com ela:
- Quer brincar com a gente?
- Não...
- Por que?
- Minha mãe disse que vocês são todos sujos e que devem estar cheios de perebas...
- Ah!
- E também eu não brinco com meninos, só com meninas.
- Ah...
- Se você quiser brincar aqui em casa, eu peço pra minha mãe.
- Não, não precisa falar... Eu gosto de brincar é aqui fora, na rua mesmo. Com os meninos.
- Tá. Tchau.
- Tchau. E todo dia, quando brincávamos, sempre tínhamos de parar a bola para esperar a mãe passar com a menina que parecia um bibelô.
No ginásio, a coisa não foi muito diferente. Sim, sou do tempo do ginásio e estudava inglês e francês! Pelo menos a escola pública fazia a gente conviver com a diversidade: tinha gente muito mais pobre que eu, tinha negros, tinha feios. E tinha as meninas e os meninos ricos, que pareciam mais bem vestidos, bonitos e limpos dentro do mesmo uniforme. Dos professores, alguns foram marcantes: a de língua portuguesa dos dois primeiros anos sempre jurava que iria me reprovar; a de educação moral e cívica ficava a aula inteira repetindo o discurso da ditadura militar sobre os valores da pátria e da família – era preguiçosa, não escrevia no quadro de giz e nem se levantava da cadeira. Nos dois últimos anos do ginasial, o professor de português, além de me obrigar a aprender gramática e a gostar de escrever, me ensinou também a gostar de literatura.
Escrevo hoje pensando nele, professor João Rios, que, no início de cada ano, passava uma lista de livros para serem lidos até o final do período. Ninguém precisava comprar, estavam todos na biblioteca municipal. De vez em quando a bibliotecária, uma velhinha beata, exercia seu poder de censura e não deixava a gente levar os livros que julgava impróprios para menores. Tínhamos de ouvir um sermão sobre os valores da família cristã ameaçados pela má literatura. Aí o pau comia: seu João fazia uma visita à biblioteca e, quando voltávamos, a senhorinha estava uma seda. Líamos de Dostoievsky a Jorge Amado, de Camus a Graciliano Ramos, de Flaubert a García Márquez. De vez em quando, seu João fazia uma pausa nas aulas de gramática, sorteava um dos livros da lista e falava longamente sobre ele. Entenderam? Era um professor que nos fazia ler, mas não havia prova de leitura, nem fichamento de livro para avaliação, nada dessas coisas. E quando, nessa pausa, ele falava sobre um livro que eu já havia lido era como se abrisse novas janelas para o mundo. Para entender o mundo.
Não sei como eu conseguia ler quase dez livros por ano, nos dois anos que estudei com seu João. Eu era rueira, não parava em casa, tinha colegas e amigos pela cidade toda. Gostava de nadar no clube dos pobres. Lá, de vez em quando, apareciam técnicos esportivos, que nos ensinavam natação e vôlei. Eu acho que eram contratados pela prefeitura e que o clube era público, mas nunca me preocupei com isso. Houve um tal Eli, que ensinava as modalidades de natação e promovia até competições em cidades vizinhas. Teve também um seu Raimundo, que ensinava natação e vôlei. Era um chato, mas era bom técnico. Depois de anos que saí da cidade, tive notícia dele pela Internet, sempre ligado aos esportes.
Hoje meu irmão me conta que esse era um projeto do Ministério do Exército, durante a ditadura militar. Tratava-se de não deixar os jovens enveredarem pelo caminho da política, enquanto seu tempo era todo tomado por compromisso com os treinadores, que os levavam a competições e atuavam como verdadeiros preceptores, aproveitando as lições do esporte para ensinarem também valores, geralmente os mais reacionários, hegemônicos na época da ditadura militar.
Mas acho que isso não teve influência sobre mim. Enquanto praticava esportes e era, sem perceber, manipulada para ser despolitizada, tinha, em contrapartida, um valoroso professor de literatura me abrindo janelas para entender o mundo e fazer as escolhas ideológicas que me tornaram quem sou hoje.
Por isso posso dizer que sobrevivi a duas pragas: o preconceito social e a ditadura militar.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012
O passado é pedagógico II
As reminiscências da época da escola primária continuam.
Minha vida escolar na pequena cidade foi muito proveitosa. Na época eu não tinha ainda condições de formar a visão da escola como espaço de reprodução das práticas sociais. Mas isso ficou muito claro um pouco mais tarde, e foi a partir do que vivenciei. Educação laica? Nem pensar. Era a escola – pública – que nos preparava para a primeira comunhão, assim como era no espaço escolar que se realizavam algumas das festas da igreja.
Um detalhe cômico: a professora que me preparou para a primeira comunhão nos passava muito medo com a possibilidade de a hóstia ficar grudada no céu-da-boca:
- Se a hóstia gruda no céu-da-boca, é sinal de que houve mentira na confissão ou não teve arrependimento sincero...
- E como é que se faz, professora? Se grudar...
- Ah, se enfiar o dedão para soltar a hóstia, é pecado! Só pode passar a língua e, se não soltar, tem de esperar até derreter.
Quem, depois disso, ia se deixar flagrar com o dedo na boca? Todo mundo ia fazer cara de anjo, com a hóstia grudada lá, fingindo que não tinha acontecido.
Era o mês de maio e, um dia, eu disse a minha mãe que queria ser escolhida para coroar a nossa senhora, vestida de anjo. Eu tinha mais ou menos nove anos.
- Você, minha filha? Para mim, ninguém merece mais. Você é linda mesmo como um anjinho. Mas não vai ser escolhida...
- Por que, mãe? Eu quero tanto!
- Por que, antes de escolher a criança para fazer isso, a escola manda um bilhete pedindo autorização dos pais...
- Então?... A senhora deixa?
- É que junto com a autorização tenho de concordar em comprar a roupinha, as asas, a tiara, o véu...
- E?...
- Isso custa caro, benzinho...
- A senhora não tem dinheiro?
- Não...
- Mas eu posso vender pé-de-moleque, mãe!
- Pode, bem, mas mesmo assim o dinheiro não vai dar...
Hoje faço ideia de quanto essa conversa custava para minha mãe. Mas eu nem pensava no constrangimento dela, quando cheguei da escola, contando como havia sido a cerimônia de coroação, enquanto ela terminava de fazer o almoço.
- Ah, mãe, foi lindo demais! A santa ficava lá, bem no alto da escada toda enfeitada de flores! Flores de todas as cores. A diretora ficava bem ao lado da santa e, do outro lado, o padre. As crianças todas em fila no pátio, cantando aquelas músicas da missa - “Vestida de branco ela apareceu...”
- Imagino...
- E depois veio subindo a escada devagar, a Maria Augusta, vestida de anjo, com o cabelo pretinho e bem liso embaixo da tiara brilhante... até no véu tinha umas florzinhas... ela foi subindo, uma túnica de cetim branco brilhando, brilhando... foi subindo, carregando uma almofadinha vermelha, de veludo, e em cima dela a coroa, que parecia de prata, e brilhava, brilhava... Tudo brilhava muito, mãe!
- Sei... Foi bonito, então?
- Ah, foi lindo, lindo demais!
- Pois então... quem sabe no ano que vem você vai coroar a santa...
- É, mãe, quem sabe...
E quando minha mãe se virava para o fogão, mexendo as panelas, eu a interrompia de novo:
- Mas, mãe, por que a Maria Augusta foi escolhida para coroar nossa senhora? Ela nem parece anjo!...
Minha mãe não respondia, mas eu via que, mexendo sem parar as panelas, ela suspirava.
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