- Não entendo... Como vim parar aqui?
Selma olha a sua volta e reconhece imagens guardadas em algum canto da memória. Vinte anos depois de ir para São Paulo, vê-se agora inexplicavelmente transportada para sua cidadezinha no interior do Maranhão, de onde saiu aos dezesseis anos em busca de futuro melhor.
Amanhece. Ela nota que está de chinelos e com a camisola que vestiu ao se deitar ontem. Não se lembra de mais nada, apenas de ter se deitado para dormir.
Olha em frente e lá está a rua em que morava quando criança. Não há mais a sua casa, mas no lugar dela um predinho com loja de duas portas no térreo, uma varandinha logo acima da marquise e duas janelas com cortinas claras.
- Quem será que mora aqui agora?
Faz um gesto para alcançar a campainha, mas se detém. Pensa que é muito cedo, deve ter gente ainda dormindo lá dentro. Espera.
Na outra calçada da rua sem movimento, alguém abre um portão pintado de vermelho. Uma mulher sai e fica olhando para Selma.
- Marinalva? Graças a Deus! Lembra de mim?
- Selma?! Vixe, é você mesmo? Não acredito! Mas que faz aqui, assim, de camisola? Corre, dê cá um abraço!
Amigas de infância sofrida e adolescência idem, as duas se encontram no meio da rua vazia. Um abraço demorado traz de volta antigos afetos, reconhecem-se como se o tempo não tivesse passado.
- Vem cá pra dentro, acabei de passar o café, já ia comprar o pão. Vem, amiga, a casa é sua. Eles ainda estão dormindo, meu marido e meus filhos, mas daqui a pouco acordam.
Na casa modesta Selma conta a Marinalva o que não sabe. Não sabe como veio parar ali, não se lembra do que aconteceu.
- Sabe? Agora há pouco no rádio deu uma notícia de coisas estranhas acontecendo em São Paulo. Gente que desapareceu, muita gente mesmo. Diz que a cidade está na maior confusão.
- Ah, Marinalva, então eu sou uma das pessoas que desapareceram. Não tem outra explicação.
- Toma, amiga, veste esta roupa minha, vamos até a padaria. Quem sabe a gente fica sabendo de mais alguma coisa lá?
Selma está perplexa. Quer saber onde estão as outras pessoas de sua família, que ficaram para trás quando ela fugiu para São Paulo. Pai, mãe, irmã e irmãos.
- Toda a sua família foi pra São Luís, pouco tempo depois que você sumiu. Acho que seu pai tinha esperança de encontrar você lá...
Saem rumo à padaria. No caminho, encontram outras pessoas vagando pelas ruas, desnorteadas.
- Vixe! Não foi só você que voltou, Selma! Olha ali o Nonatinho, lembra dele? Estava em São Paulo também. Aqueles outros eu não conheço, mas aquela senhora mais velha parece a mãe da Deusina, lembra? Ela largou a família e sumiu, já faz uns dez anos!
- Jesus! Que confusão é essa, amiga? O que que nós estamos fazendo aqui? Será que um poder maior despachou todos os nordestinos de São Paulo de volta pro Nordeste?
- Sei não, amiga! Vamos ver se na padaria as pessoas estão comentando alguma coisa...
O cheirinho do pão fresco no ar lembra aquele das manhãs paulistanas, quando Selma vai cedinho comprar o pãozinho para o café da manhã da família.
Na padaria, seu Manoel está em uma manhã agitada. Muita gente estranha aparece para pedir informação. Homens e mulheres querem saber o nome da cidade, dizem não saber o que fazem ali. Em meio aos aromas de pão e café, ele repete a notícia que ouviu no rádio:
- Sumiu muita gente de São Paulo. Se a senhora mora lá, então vai ver que é por isso que está aqui.
- Sumiu como, Seu Manoel? Aqui, encontrei a Selma, que saiu daqui há vinte anos... Ela foi pra São Paulo e apareceu lá na rua em que a gente morava!
- Eu eu sei, Marinalva? Só sei que esse povo todo apareceu na cidade de manhãzinha, todo mundo meio tonto, desnorteado. O que eu posso fazer é repetir a notícia que deu no rádio hoje cedo. Diz que São Paulo amanheceu bem vazia...
- Será que os nordestinos todos resolveram voltar? Mas a Selma nem sabe como veio parar aqui...
- Disse no rádio que não foram só os nordestinos, não. Todo mundo que não era de lá sumiu.
- Meu Deus! Ai, Marinalva, que que eu faço? Eu tenho uma vida lá em São Paulo!
- Então, amiga! Vamos lá em casa ligar a televisão e ver se tem mais alguma notícia. Já está na hora de começarem os jornais. Mas me conta, como é sua vida lá?
Selma quase começa a contar sua história em São Paulo, mas alguma coisa a faz se calar. Pensa que Marinalva está lá, no mesmo lugar, com sua casa, seu marido e seus filhos. E ela? Durante todo esse tempo, ficou trabalhando de casa em casa, até parar mais tempo com uma família. De seu, tem apenas o que cabe no quarto de empregada. Ah, para que contar isso a alguém?
Sua cidade natal está bem maior agora, tem asfalto, energia elétrica, comércio. Dói pensar que talvez devesse ter ficado. Fugiu em busca de futuro, vive em São Paulo uma vida apagada, sempre trabalhando e morando nas casas de outros. E se tivesse ficado? Será que teria uma vida igual à de Marinalva?...
Pela TV, as amigas veem: São Paulo está parada, vazia, caótica. Como uma cidade amanhece assim, sem metade de sua população, da noite para o dia?
Selma olha a sua volta e reconhece imagens guardadas em algum canto da memória. Vinte anos depois de ir para São Paulo, vê-se agora inexplicavelmente transportada para sua cidadezinha no interior do Maranhão, de onde saiu aos dezesseis anos em busca de futuro melhor.
Amanhece. Ela nota que está de chinelos e com a camisola que vestiu ao se deitar ontem. Não se lembra de mais nada, apenas de ter se deitado para dormir.
Olha em frente e lá está a rua em que morava quando criança. Não há mais a sua casa, mas no lugar dela um predinho com loja de duas portas no térreo, uma varandinha logo acima da marquise e duas janelas com cortinas claras.
- Quem será que mora aqui agora?
Faz um gesto para alcançar a campainha, mas se detém. Pensa que é muito cedo, deve ter gente ainda dormindo lá dentro. Espera.
Na outra calçada da rua sem movimento, alguém abre um portão pintado de vermelho. Uma mulher sai e fica olhando para Selma.
- Marinalva? Graças a Deus! Lembra de mim?
- Selma?! Vixe, é você mesmo? Não acredito! Mas que faz aqui, assim, de camisola? Corre, dê cá um abraço!
Amigas de infância sofrida e adolescência idem, as duas se encontram no meio da rua vazia. Um abraço demorado traz de volta antigos afetos, reconhecem-se como se o tempo não tivesse passado.
- Vem cá pra dentro, acabei de passar o café, já ia comprar o pão. Vem, amiga, a casa é sua. Eles ainda estão dormindo, meu marido e meus filhos, mas daqui a pouco acordam.
Na casa modesta Selma conta a Marinalva o que não sabe. Não sabe como veio parar ali, não se lembra do que aconteceu.
- Sabe? Agora há pouco no rádio deu uma notícia de coisas estranhas acontecendo em São Paulo. Gente que desapareceu, muita gente mesmo. Diz que a cidade está na maior confusão.
- Ah, Marinalva, então eu sou uma das pessoas que desapareceram. Não tem outra explicação.
- Toma, amiga, veste esta roupa minha, vamos até a padaria. Quem sabe a gente fica sabendo de mais alguma coisa lá?
Selma está perplexa. Quer saber onde estão as outras pessoas de sua família, que ficaram para trás quando ela fugiu para São Paulo. Pai, mãe, irmã e irmãos.
- Toda a sua família foi pra São Luís, pouco tempo depois que você sumiu. Acho que seu pai tinha esperança de encontrar você lá...
Saem rumo à padaria. No caminho, encontram outras pessoas vagando pelas ruas, desnorteadas.
- Vixe! Não foi só você que voltou, Selma! Olha ali o Nonatinho, lembra dele? Estava em São Paulo também. Aqueles outros eu não conheço, mas aquela senhora mais velha parece a mãe da Deusina, lembra? Ela largou a família e sumiu, já faz uns dez anos!
- Jesus! Que confusão é essa, amiga? O que que nós estamos fazendo aqui? Será que um poder maior despachou todos os nordestinos de São Paulo de volta pro Nordeste?
- Sei não, amiga! Vamos ver se na padaria as pessoas estão comentando alguma coisa...
O cheirinho do pão fresco no ar lembra aquele das manhãs paulistanas, quando Selma vai cedinho comprar o pãozinho para o café da manhã da família.
Na padaria, seu Manoel está em uma manhã agitada. Muita gente estranha aparece para pedir informação. Homens e mulheres querem saber o nome da cidade, dizem não saber o que fazem ali. Em meio aos aromas de pão e café, ele repete a notícia que ouviu no rádio:
- Sumiu muita gente de São Paulo. Se a senhora mora lá, então vai ver que é por isso que está aqui.
- Sumiu como, Seu Manoel? Aqui, encontrei a Selma, que saiu daqui há vinte anos... Ela foi pra São Paulo e apareceu lá na rua em que a gente morava!
- Eu eu sei, Marinalva? Só sei que esse povo todo apareceu na cidade de manhãzinha, todo mundo meio tonto, desnorteado. O que eu posso fazer é repetir a notícia que deu no rádio hoje cedo. Diz que São Paulo amanheceu bem vazia...
- Será que os nordestinos todos resolveram voltar? Mas a Selma nem sabe como veio parar aqui...
- Disse no rádio que não foram só os nordestinos, não. Todo mundo que não era de lá sumiu.
- Meu Deus! Ai, Marinalva, que que eu faço? Eu tenho uma vida lá em São Paulo!
- Então, amiga! Vamos lá em casa ligar a televisão e ver se tem mais alguma notícia. Já está na hora de começarem os jornais. Mas me conta, como é sua vida lá?
Selma quase começa a contar sua história em São Paulo, mas alguma coisa a faz se calar. Pensa que Marinalva está lá, no mesmo lugar, com sua casa, seu marido e seus filhos. E ela? Durante todo esse tempo, ficou trabalhando de casa em casa, até parar mais tempo com uma família. De seu, tem apenas o que cabe no quarto de empregada. Ah, para que contar isso a alguém?
Sua cidade natal está bem maior agora, tem asfalto, energia elétrica, comércio. Dói pensar que talvez devesse ter ficado. Fugiu em busca de futuro, vive em São Paulo uma vida apagada, sempre trabalhando e morando nas casas de outros. E se tivesse ficado? Será que teria uma vida igual à de Marinalva?...
Pela TV, as amigas veem: São Paulo está parada, vazia, caótica. Como uma cidade amanhece assim, sem metade de sua população, da noite para o dia?
(continua...)
Um comentário:
Bel ,
Estou toda envolvida com a narrativa,me pensei voltando para o Lambari.Pensando bem, não saí dos
limites das Minas Gerais,se voltasse para algum lugar, nem iria
prá tão longe assim...
Quero mesmo é saber onde o causo vai parar. Vc catucou minha curiosidade nos úrtimo... bjus, tô aguardando mais
Glória
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