quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou

(O texto a seguir é ficcional. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais não é mera coincidência, visto que a arte imita a vida e vice-versa.)

Acordou estranhando o silêncio naquela quarta-feira. Não ouviu o costumeiro barulho na cozinha, não sentiu o cheirinho do café fresco, sentiu falta de alguém cantarolando baixinho.

- Selma?... Selma!... Ué, cadê a Selma, gente? Cadê o café da manhã?

Logo veio o marido e ela estava atrapalhada na cozinha, tentando preparar o café da manhã, antes que as crianças saíssem do quarto.

- Cadê a Selma?

- Não sei, não está aqui.

- Será que ela não dormiu em casa? Mas ela nos deu "boa noite" ontem, dizendo que ia dormir...

- Pois é, não dormiu aqui. E sabe-se lá a que horas vai chegar...

Chegam as crianças, duas garotas de 10 e 12 anos, já com roupa de escola. Olham em volta e veem que é um daqueles raros dias em que a Selma não está em casa. Veem a mãe tirando queijo, leite e suco da geladeira. Pão, só o de ontem, porque a Selma é que devia ter comprado cedinho... Café tem de ser o solúvel mesmo, a água já estava fervendo no microondas.

- Engraçado, a televisão não está passando o jornal matinal - diz o pai.

- Hoje está um dia muito esquisito, querido... fala a mãe. - Estou achando o ar mais silencioso, não ouço o barulho dos ônibus e já são quase 8 horas... Será greve dos rodoviários?

- Terminaram, meninas? Então vamos, já estamos atrasadas - diz a mãe. Tchau, querido, bom dia! Depois de deixar as meninas na escola, vou fazer as compras do mês. Quando eu voltar a Selma já estará aqui, para guardar tudo e fazer o almoço.

- Tchau, querida, vejo você à noite. Ah, quem me dera poder vir almoçar com vocês... Impossível, com o trânsito de São Paulo! - falou isso com orgulho de ser paulistano.


Mal andou dois quarteirões e ele já está irritado com o trânsito, mais lento do que o normal. Não vê aquela quantidade enorme de ônibus que sempre o atrapalham, apenas três ou quatro. Mas está vendo muito mais carros na rua.

- "Deve ser greve" - pensa. "Saco! Todo dia tem alguma coisa para atrapalhar."

Atrasado, coloca o carro no estacionamento pago, a meio quarteirão do escritório. No caminho, percebe que a banca de revistas está fechada. Estranha. Sempre compra o jornal antes de entrar no centro empresarial e bate um papo rápido com seu Nonato, o dono da banca, que conhece há mais de 10 anos.

Ele sempre dá uma passadinha rápida no café do térreo do centro empresarial, compra um para viagem e sobe pelo elevador. Mas hoje só há três garçonetes, em vez das oito habituais. Fila no caixa. Desiste do café, corre para pegar o elevador. Ao descer no andar do escritório, percebe que está mais vazio. Vários colegas de trabalho ainda não chegaram: o Eustáquio, a Yoko, o Gilvan, a Socorro, o Raoni...

- É, deve ser greve mesmo. De rodoviários, metroviários, sei lá...

Mal se senta e seu celular começa a tocar. É a esposa:

- Querido, não sei o que fazer. A escola está sem um terço dos professores. A diretora não sabe o que aconteceu, ninguém avisou nada. A Clarinha tem professor para três horários e a Sofia para dois. Que que eu faço?

- Será que os professores estão em greve?! Mas não, é escola privada, não tem greve, né?

- Não, parece que eles simplesmente faltaram, não chegaram para trabalhar.

- Ah, então, leva as meninas para casa. Melhor, leva elas para as compras com você, depois vão todas para casa. Amanhã a coisa deve se normalizar.

De novo a irritação, porque o telefone do escritório toca sem parar. Droga! Despede-se rapidinho da mulher e atende, porque a Socorro não está. É a Flavinha, estagiária:

- Doutor, tô ligando pra avisar que hoje não vai dar pra chegar aí, aqui em Itaquera tá a maior confusão, trânsito parado, lojas fechadas, canteiros de obras vazios. Ninguém sabe o que está acontecendo.

- Ah, Flavinha, deve ser alguma greve...

- Não é, não, doutor. É alguma coisa estranha, estão faltando pessoas nas ruas, nas casas, nas lojas, nos prédios em construção... Tudo muito esquisito, parece que sumiu todo mundo... Os nossos vizinhos da frente saíram e deixaram a casa aberta.

- Tá bem, Flavinha, não esquenta. Se não der pra chegar aqui, fique em casa. Tchau!

Esquisito. Ele percebe que está mesmo é faltando gente na cidade. São Paulo sempre tem tanta gente nas ruas. Mas agora, olhando pela janela do escritório, ele vê bem menos gente transitando. No prédio em que trabalha, o movimento dos corredores está reduzido.

Liga de novo a mulher:

- Querido, tá a maior confusão no supermercado. Faltam vários funcionários, não tem reposição de produtos, não tem açougueiro, nem padeiro, pouquíssimos caixas. Não sei como vou fazer as compras...

- É, querida, tem alguma coisa errada. Tá faltando gente em vários lugares da cidade.

- Olha, aqui tem uma televisão ligada e vai ter edição extra do jornal. Vou desligar e te ligo de novo, pode ser alguma notícia para a gente saber o que está acontecendo.

Enquanto espera, ele liga o computador e busca notícias nos portais dos principais jornais. Nada, apenas uma notícia de que o maior hospital da cidade está funcionando de forma precária, porque muitos profissionais não compareceram ao trabalho.

Volta a tocar o celular. E a mulher:

- Ai, querido, a notícia que deu na televisão é de que São Paulo amanheceu com menos de 50% da população. Será possível? Para onde foi todo mundo? Ah, liguei lá em casa e a Selma ainda não apareceu...

- Pois é, alguma coisa aconteceu e as notícias são insuficientes. Eu jurava que era alguma greve, mas agora começo a pensar que é outro ataque do PCC, sei lá...

- Ai, querido, vou pra casa agora mesmo com as crianças. Dá um jeito de ir você também, tá? Não demora, está me dando um medo...

- Calma, bem! Vai com calma, não se preocupe com as compras. Eu também vou, encontro vocês em casa.
(Continua...)

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