sábado, 27 de fevereiro de 2010

Chile e Haiti

São terríveis as imagens do terremoto que arrasou a região centro-sul do Chile hoje. Segundo os especialistas, a origem do tremor de 8,8 graus na escala Richter localiza-se a mais ou menos 30 km de profundidade, diferentemente daquele ocorrido no Haiti, cujo ponto de origem foi a uma profundidade de 10 km.

Não há como ficar indiferente ao desespero do povo chileno, ainda atordoado pela tragédia, procurando sobreviventes e contando seus mortos. Mais uma vez é preciso formar a corrente de solidariedade para a ajudar nossos irmãos latino-americanos.

Mas algumas reflexões se impõem neste momento doloroso, quando todos os meios de comunicação fazem a cobertura incessante do cataclisma e de suas consequências para os países vizinhos, por causa do alerta de tsunami provocado pelos tremores. É inevitável a comparação com o que ocorreu no Haiti, país sabidamente muito mais pobre do que o Chile.

No Haiti, as construções não tem a solidez das construções chilenas, erguidas de acordo com normas observadas em países que se sabem sujeitos a tremores de terra. Os prédios e casas haitianos foram erguidos com material mais barato, utilizando técnicas nada modernas de construção civil. Evidentemente, são construções mais vulneráveis a tremores de terra, como o que recentemente arrasou aquele país, provocando mais de 200 mil mortes.

No Chile, até o momento, tem-se notícia de algo em torno de 200 mortes e muitos estragos e prejuízos. Além da maior segurança proporcionada pela engenharia civil chilena, é certo que os danos e mortes não foram maiores graças à profundidade em que se originou o tremor. No Haiti, além da precariedade das construções, ainda se deu que essa profundidade foi menor, tornando o terremoto, portanto, muito mais arrasador.

Obra do acaso, que fez com que o Chile ficasse menos exposto do que o Haiti? Sim, pode haver a mão do acaso nisso. Mas não se pode negar que a muito maior extensão da tragédia haitiana tem relação direta com a pobreza do país, cuja população foi muito mais prejudicada e continua muito mais desassistida do que a população chilena, já que a defesa civil do Chile é mais bem equipada e preparada para lidar com esse tipo de desastre natural.

Graças à maior solidez também da democracia chilena, seu povo não corre o risco de que tropas internacionais sejam deslocadas para lá, a pretexto de levar "ajuda humanitária", como ocorreu no Haiti, que hoje pode ser caracterizado como um país ocupado pelas forças armadas dos EUA, enquanto sua desesperada e pobre população luta para estabelecer um mínimo de normalidade em seu cotidiano.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Das artes e das artimanhas

Fui ver a exposição sobre Clarice Lispector no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília. Além de emocionar pela captação da contraditória relação da escritora com as palavras, a exposição dá acesso a originais de cartas trocadas entre Clarice e vários escritores e intelectuais brasileiros. Há um enorme gaveteiro em uma das salas da exposição e, dentro das gavetas que a gente vai abrindo, há essas cartas - íntimas umas, formais outras -, rascunhos angustiados, fotografias, bilhetes familiares, junto com exemplares das primeiras edições de seus livros. Tudo isso vai descortinando o complexo painel da vida dessa que é a maior escritora brasileira. Por fim, há uma sala de projeção, onde se pode assistir ao vídeo da entrevista concedida por Clarice a Júlio Lerner, em 1977, poucos meses antes de sua morte.


Nessa entrevista, em que aborda os mais variados assuntos, Clarice nos conta, intrigada, de quando foi procurada por um professor de literatura, que lhe confessou que lia e relia
A paixão segundo GH mas não conseguia entender o livro para poder trabalhá-lo com seus alunos. Em contrapartida, conheceu uma menina de 17 anos que lhe declarou ter A paixão... como livro de cabeceira, que, a cada leitura, lhe revelava novos sentidos para a vida. Mas a escritora evita extrair dessa observação qualquer conclusão apressada, como que deixando a resolução de um enigma a cargo do expectador.

Essa mostra fica no CCBB até o dia 14 de março. A entrada é franca. Se você não viu, ainda há tempo.

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E o CCBB inaugura, ainda em março, a mostra de grafites dos irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo, conhecidos como
Os gêmeos. Pela amostra, será muito interessante, aguardemos:



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Artimanhas

Leio hoje nos jornais que o agressivo advogado do governador licenciado - e ainda preso - José Roberto Arruda está negociando com a Justiça a sua libertação, em troca de permanecer afastado do governo do DF até que se concluam as investigações da Operação Caixa de Pandora.

Esse escândalo da corrupção no DF está desnudando aspectos inéditos da relação entre criminosos e Justiça... Desde quando esse tipo de negociação é possível? Alguém acredita que, livre em Brasília, ainda que afastado do governo, Arruda cessará suas ações para obstruir as investigações?

Os jornais dão notícia de que houve "racha" entre os advogados do governador. Afastaram-se os "eminentes" juristas de Brasília - quatro ao todo - para dar lugar exclusivo ao escritório do carioca Nélio Machado, notório por atuar em defesa de Daniel Dantas, entre outros criminosos endinheirados menos conhecidos.

Por seu lado, Paulo Octávio, que nesta semana se desfiliou do DEM e renunciou ao cargo de governador substituto, agora está sem pai nem mãe, perdeu a imunidade parlamentar. Mas como diz a sabedoria popular, "rico não vai para a cadeia." Aguardemos para saber como será a defesa de um dos homens mais ricos do DF, dono de uma fortuna amealhada sempre à sombra do poder público, que o beneficiou de todas as formas ilegais imagináveis e por imaginar.

Enquanto isso, a Câmara Legislativa tenta mostrar trabalho, aceitando os pedidos de impeachment do governador licenciado e abrindo processo interno contra três dos oito deputados distritais implicados no esquema, apenas os que foram flagrados pelas câmeras de Durval Barbosa. A CLDF tenta evitar a intervenção federal, que agora é tida como certa. Meio tarde, não? A essa altura, a população de Brasília já sabe que não pode confiar nessas vestais da (i)moralidade pública.

Enquanto isso, o novo governador Wilson Lima vê os fatos desabonadores de seu passado político serem trazidos à tona. E que passado cabeludo, hem, gente? Claro que o jornalismo investigativo sobre ele não está sendo feito pelo Correio Braziliense, que, de tão comprometido, venda os olhos enquanto sua reputação rola esgoto abaixo.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Cai mais um

O governador do DF em exercício, Paulo Octávio, acaba de anunciar sua renúncia ao cargo, conforme previ aqui em post anterior. Absolutamente previsível, depois que se avolumaram as denúncias contra Arruda e seu vice, com a investigação do esquema de propina para a concessão de lotes do programa de industrialização do DF, o Pró-DF - gerenciado pela secretaria de responsabilidade de Paulo Octávio.

"Gerenciado" é eufemismo para o tipo de gestão que se instalou aqui durante a administração do DEM. Corre nas rodas de conversas que existe até tabela de preços, diferenciados para cada tipo de lote, conforme a localização. Não se trata do preço do lote, não... Trata-se do preço da propina a ser paga pela concessão!

É bom lembrar que, se for mesmo puxado o fio das concessões de lotes do Pró-DF, muita "gente boa" vai ser obrigada a se colocar "de costas para a parede". Já ouviram falar de um certo IDP - Instituto Brasiliense de Direito Público? Pois é, encontra-se em área nobre de Brasília. Sabe quem são os donos? Já viu quem são os professores que dão cursos nessa instituição? Sabia que o lote para sua construção foi concedido pelo Pró-DF? Pois é...

Os que defendem a intervenção federal no governo do GDF o fazem porque sabem que a corrupção quadrilheira está tão, mas tão enraizada em todas as instâncias e instituições, que não há como acreditar na superação do colapso institucional, por obra e graça da Câmara Legislativa, das polícias e dos políticos locais. Impossível.

Agora, pela Lei Orgânica do DF, o cargo vago tem de ser ocupado pelo presidente da Câmara Legislativa, Wilson Lima. Você o conhece? Quando conhecê-lo, não se espante. É o típico subproduto da cultura política local, patrocinada pela "vanguarda do atraso".

Aguardemos, pois.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Roubos

Durante as caminhadas pelo parque, a gente ouve muitos fragmentos de conversas. Um exercício interessante, depois que se apreende um pedaço do papo entre pessoas que caminham juntas, é tentar criar um contexto para o que se ouviu. Dá para rir um pouco, sabem? Além disso a gente se distrai enquanto faz, por obrigação para com a saúde, um exercício tão entediante. Uma vez ouvi trecho de conversa entre dois homens, ambos na faixa dos 40:

- Aí eu falei pra ela que tinha que mudar de posição, assim não dava...

Dei tratos à bola. Em que situação ele poderia ter dito isso a uma "ela"? Fiquei pensando em que posição estaria ela para ter que mudar... Seria posição ideológica? Profissional? Sexual? Vá saber!

Mas interessantes mesmo foram as palavras que uma amiga disse à outra, ambas na faixa dos 30, bem cuidadas, bonitas mesmo. Foi durante uma caminhada no balneário de Araxá:

- Aí eu falei pra ela que, na minha terra, a gente rouba o marido da amiga, mas nunca rouba a empregada!

Espantoso! Fiquei a pensar, primeiro, onde poderia ser a terra dessa moça. Que lugar interessante é esse, em que uma mulher pode roubar o marido da amiga e, provavelmente, não perderá a amizade dela? Como devem ser felizes os maridos das mulheres desse lugar! Devem viver trocando de lar, pulando de amiga em amiga, até voltar para a primeira mulher! Imaginei uma cidade qualquer, em Minas Gerais (pois as duas eram mineiras), em que as mulheres, sempre bem assistidas por excelentes empregadas domésticas, dedicavam seu tempo a roubar os maridos das amigas. Paraíso na terra?

Essas mulheres não precisam se preocupar com nada. Dizem orgulhosas umas para as outras:

- Minha empregada é ma-ra-vi-lho-sa! Lá em casa eu não sei onde fica guardada nem uma fronha!

E o que dizer das empregadas domésticas dessa cidade? Devem ser superempregadas, daquelas que, de manhã, chegam a tempo de colocar sobre a mesa um caprichado café-da-manhã. Depois limpam, arrumam, lavam e passam, cuidam das crianças, cozinham pratos fantásticos. Mantém a casa limpíssima, arrumadíssima, cheirosíssima. Tudo isso com um sorriso branquíssimo no rosto, os olhos iluminados de felicidade por trabalharem para patroa tão competente em roubar os maridos das amigas...


Essa empregada, quando chega o fim do dia, não aparenta cansaço. Se a patroa vai a um jantar romântico com um marido recém-roubado, tem disposição para ficar cuidando das crianças. Dedica à família para a qual trabalha um afeto inquestionável. Não reclama de cuidar sozinha da casa, não exige a contratação de uma faxineira. Não tem carteira assinada, porque a patroa disse que o desconto da previdência seria para ela um prejuízo. Sabe ler o básico para entender uma receita ou anotar um recado, conhece as operações aritméticas para fazer compras na mercearia do bairro. Uma santa!

E o salário da superempregada deve ser alto, à altura dos superserviços que presta: um salário-mínimo!

É óbvio que nenhuma das superempregadas tem marido. Tampouco a elas é permitido entrar na ciranda de roubo dos maridos das patroas. Senão, onde o mundo vai parar? Enquanto umas trocam de maridos como trocam de blusas bem passadas, outras tem que ficar cuidando da rotina doméstica e passando muito bem as blusas das patroas! Nesse quesito não se pode defender a igualdade de direitos, seria um absurdo!

Bem, de repente parei de imaginar, porque terminara a caminhada. Aquela frase ainda ecoava na minha mente, parecendo-me de uma crueldade inacreditável. Não era para ser novidade, pelo menos para mim, que vivo pesquisando como a literatura apreende as formas objetivas da realidade social. E uma dessas formas é a não-superação das relações de escravidão. A figura da empregada doméstica é a roupagem moderna dessas relações, mercadoria valiosa que não pode ser roubada.

Mas, acreditem, foi novidade pela desfaçatez com que a frase foi dita pela linda, e provavelmente rica, mulher que caminhava em uma manhã de domingo.