sexta-feira, 30 de março de 2012

A face civil da ditadura empresarial-militar

Tenho visto manifestações patéticas dos militares de pijama, no afã de comemorar os 48 anos do golpe empresarial-militar de 1964. Chegam a dizer que salvaram o Brasil de se transformar em uma ditadura comunista. Seria risível se este pretexto não tivesse precipitado o país em período de trágico retrocesso no seu desenvolvimento econômico, social, cultural e democrático.

Hoje é impossível rir do primarismo que regeu - e rege ainda - os argumentos dos defensores do período de exceção, que se transformou rapidamente em regime de força, perpetrando contra seus cidadãos o terrorismo de estado e todas as desgraças dele decorrentes. Gosto de lembrar que não havia luta armada enquanto não houve golpe dentro do golpe, que recrudesceu as relações entre o governo das armas e a sociedade civil que ele, teoricamente, deveria preservar e defender.

A parcela da sociedade brasileira que logo se configurou como a mais beneficiada pela ditadura foi a dos empresários. A dos ricos, que fizeram dos militares, seduzidos pelas promessas do poder, meros capachos executores de ordens para manter os movimentos sociais aniquilados, enquanto seus luminares colocavam em prática uma política econômica baseada no endividamento externo e na concentração da renda.

Delfim Neto, superministro civil da ditadura empresarial-militar, ouve atentamente o discurso de Costa e Silva

Contando com a cumplicidade dos meios de comunicação, o regime ditatorial empresarial-militar foi mantendo o povo alienado e alheio aos assassinatos dos opositores que ousaram se organizar em movimentos armados, assim como nos movimentos estudantil e do operariado. Os trabalhadores rurais, que vinham se organizando nas Ligas Camponesas, liderados por Francisco Julião, entre outros, foram alvos de perseguições e assassinatos, não pelos homens de baioneta em riste, mas pelas milícias contratadas pelos coronéis do latifúndio. 

A imprensa teve papel preponderante no controle do imaginário durante os governos ditatoriais. Basta lembrar que as vans do jornal Folha de São Paulo eram usadas para, além de carregar os pacotes de jornais distribuídos pela cidade, transportar os prisioneiros políticos antes e depois das sessões de tortura a que eram submetidos pelo DOI-CODI, DOPS e outros órgãos de repressão aos movimentos políticos.

Também gosto de lembrar - não que isso seja prazeroso - que havia civis a serviço das forças de repressão, infiltrados nos movimentos estudantis, nos movimentos operários, nos movimentos camponeses, nas mesas de botecos, nos bancos das universidades, dedurando estudantes, professores, sindicalistas... Foi fácil estender a deduragem aos desafetos, que não necessariamente tinham qualquer atividade política, mas cometeram o "erro" de desagradar este ou aquele policial civil, este ou aquele colaborador do regime.

Gosto de lembrar também - e isso não é prazeroso, mas me dá uma remota sensação de que a justiça poderia ser feita às vítimas da ditadura - dos empresários que não apenas apoiaram o golpe, mas também o financiaram. Um deles, mostrado no documentário Cidadão Boilesen , além de dar dinheiro para a famosa Operação Bandeirante (OBAN), tinha prazer quase sexual em assistir às sessões de tortura.

Gosto de lembrar ainda - e isso me entristece até hoje - da vala clandestina descoberta no cemitário de Perus, em São Paulo. Com certeza não estavam ali enterrados corpos de militares, mas de militantes de oposição, mortos covardemente, por tortura e/ou execução.

Gosto de lembrar - e isso me acende e renova a indignação ao longo deste quase meio século de impunidade - que, enquanto tudo isso acontecia, enquanto numerosos civis trabalhavam laboriosamente nos porões, junto com os também numerosos militares de variadas patentes, outros civis aceitavam comandar ministérios, como Delfim Neto - a montanha que pariu o rato do "milagre brasileiro" -, Armando Falcão, Ricardo Fiúza, Alfredo Buzaid, Leitão de Abreu, Ibrahim Abi-Ackel, Milton Campos, Karlos Rischbieter, Reis Veloso, Sinval Guazelli, Cirne Lima, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos, Amaury Stabile, Ester de Figueiredo Ferraz, Otávio Bulhões, Petrônio Portella, Ney Braga, Jorge Bornhausen, entre muitos outros. 

Houve também colaboradores que não ocuparam cargos, mas deram sustentação à ditadura civil-militar no Congresso Nacional, como Francelino Pereira, Antônio Carlos Magalhães, Bonifácio de Andrada, José Sarney, Flávio Marcílio, Luiz Vianna Filho, Aureliano Chaves, Magalhães Pinto, Arnon de Melo, Nelson Marchezan, Célio Borja, Tarso Dutra, Nilo Coelho, Rondon Pacheco,  Paulo Maluf - a lista é longa!

Muitos desses colaboradores de terno-e-gravata circulam desenvoltos, ainda hoje, pelos corredores do poder. Os outros, menos elegantes, escondem-se no anonimato e, de vez em quando, topam com alguém que os reconhece e os aponta como torturadores. Correm a esconder-se como ratos, sabedores de que é inútil negar seu passado escabroso.

Os militares, historicamente alinhados com a classe dominante brasileira, defenderam seus interesses, contra aqueles da maioria do povo trabalhador, ao perpetrar o golpe de 64. Colocaram-se, mais uma vez, além de capachos dos interesses dos EUA na América Latina, como bucha de canhão da elite nacional, diretamente interessada em manter com seu chamado "irmão do norte" as melhores relações. 

Por tudo isso, tendo em vista proximamente a instalação da Comissão da Verdade, defendo que sejam investigados todos os criminosos que permanecem impunes, militares e civis.