domingo, 20 de junho de 2010

O mundo sem Saramago

Escrevo ainda inconformada com a morte de José Saramago. A literatura ficou manca e o mundo ficou mais pobre. Sem sua lucidez, sua mordacidade, sua crítica dialética, seu pessimismo mobilizador amplia-se o espaço para a invasão da mediocridade, da desonestidade intelectual, da alienação travestida de reflexão, do veto à crítica da democracia moderna.

Sem Saramago, resta-nos reler e reler suas obras, com cada vez maior sentimento de orfandade. Procurar na jangada ibérica a gênese de nossa história, na cegueira a lucidez, no evangelho o homem comum, capaz de resgatar aquilo que ainda nos resta, hoje, de humano e que ficou perdido nos desvãos da torturada alma de Ricardo Reis.


Sem Saramago, talvez não encontremos homens com coragem de fazer a crítica apaixonada e ao mesmo tempo rigorosa das relações internacionais contemporâneas. Poucos terão a coragem de dizer aos intelectuais de Israel que levantem suas vozes contra o holocausto do povo palestino confinado no gueto da faixa de Gaza, como fez Saramago. Poucos terão a coragem de se proclamar comunista e ateu, escrever um livro sobre Jesus Cristo e representar literariamente a corrosão pela base do grande projeto da civilização cristã ocidental.

Poucos farão a crítica da esquerda e das utopias como a fez Saramago:

“O único lugar que existe é o dia de amanhã, a nossa utopia é fazer alguma transformação já. Não há tempo para gastar em discussões e movimentos de mobilização que resultarão em alguma melhora na qualidade global de vida somente em 2043 ou, pior, daqui a 150 anos. Quem nos garante que no futuro as pessoas estarão interessadas naquilo em que agora estamos? Para as cinco bilhões de pessoas que vivem na miséria, utopia é nada”.

Poucos, alguns, nenhuns. Sem Saramago o mundo ficou mais pobre. Leiamos Saramago.