quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Reparação (simbólica) histórica

Hoje o clima no plenário da Câmara dos Deputados foi de emoção. A sessão solene de restabelecimento simbólico dos mandatos dos deputados federais cassados pela ditadura militar reuniu naquele espaço figuras importantes da história recente brasileira. Você pode ver um pouco da solenidade aqui nesta matéria.

As famílias dos que já morreram, emocionadas, aceitaram a reparação. Os que ainda vivem, após receber o diploma e o bottom da Câmara, ali se sentaram, recuperando talvez a memória do tempo em que tinham mandato popular para estarem naquele espaço. Mandato que foi usurpado pelo regime militar. O discurso da brilhante deputada Luiza Erundina foi emocionante e tão mobilizador, que me renovou a disposição para continuar oferecendo minha pequena contribuição para a luta por justiça e pela punição dos que cometeram crimes sob respaldo do estado autoritário.

Foi também inaugurada a exposição Parlamento mutilado: Deputados Federais cassados pela ditadura militar de 1964, no corredor que liga o plenário aos anexos da Câmara. Ali se veem fotos, trechos de músicas e textos alusivos ao abuso e às arbitrariedades cometidas pelos militares no período 1964-1985.

No hall de entrada que antecede o corredor das comissões, foi instalado o magnífico painel do grande artista Elifas Andreato, no qual se representa a perversão das sessões de tortura, que se tornaram banais nos porões do regime militar. 


quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Um quase retorno

Do site da CartaCapital:

Política

Willian Vieira

Ditadura

22.11.2012 08:56

Memória reempossada


Em 6 de dezembro, exatos seis dias após completar 78 anos, a deputada federal Luiza Erundina (PSB) pisará no plenário da Câmara dos Deputados para mais um capítulo da batalha de ordem política e pessoal que a move – mas, desta vez, com uma ponta de ironia nos argutos olhos verdes. Em cerimônia planejada nos mínimos detalhes, a casa devolverá simbolicamente, em uma sessão de posse embalada pelo Hino Nacional interpretado por um cantor lírico, o mandato aos deputados cassados durante a ditadura. Os parlamentares, ou suas famílias, receberão o diploma e o broche típicos. “É uma forma de a Câmara devolver ao povo o mandato que os torturadores usurparam de seus representantes”, diz Erundina, plácida, na manhã da segunda-feira 12, em seu gabinete político em São Paulo. “E é o mínimo que podemos fazer agora, enquanto não aprovam a mudança na lei da anistia.”

Erundina não desiste. Até a terça-feira 13, o presidente da casa, Marco Maia, não havia dado o aval à sessão solene pensada por ela e requerida pelo primeiro-secretário Eduardo Gomes (PSDB-TO). Segundo a assessoria do presidente, “o pedido chegou tarde” e, “por questão de calendário”, foi decidido “priorizar a votação de matérias”. Maia não confirmaria quando ou “se” o evento ocorreria. “Três horas de cerimônia iriam atrapalhar tanto? Justo quando o País faz um esforço para buscar a verdade?”, rebateu Erundina, um dia depois, já em Brasília e prestes a discursar no ato organizado pela OAB para homenagear os advogados de presos políticos – “para o qual a Câmara não liberou um centavo, nem para as passagens dos homenageados”, diz. Ela então subiu nos tamancos: na OAB, denunciou “a má vontade que a casa sempre demonstrou em investigar sua história”. Na quarta 14, a confirmação da data do evento chegou.


“É dever da Casa, que aprovou a Lei de Anistia, mudá-la. E lembrar dos que lutaram. É nossa responsabilidade” . Foto: Isadora Pamplona

São poucos os políticos que conseguem incomodar tanto o Legislativo e Executivo ao mesmo tempo. Não apenas a deputada não coopera com o esforço do governo de agradar aos dois extremos do espectro ideológico com um consenso forjado por paliativos como desafia o silêncio do Congresso sobre o tema mais espinhoso da história brasileira. A sessão simbólica é só um exemplo. Inconformada com a decisão do Supremo Tribunal Federal de 2010, por exemplo, que rejeitou o pedido da OAB por uma revisão na Lei da Anistia que desconsiderasse como “crimes conexos” tanto a ação de agentes da repressão quanto a da luta armada, a parlamentar decidiu, no ano passado, redigir um projeto. Pretendia alterar o artigo 1º da lei de 1979. A mudança retiraria da anistia os agentes públicos, torturadores pagos pelo Estado para sequestrar, torturar e assassinar cidadãos, e permitiria sua punição, “o que aconteceu em qualquer país decente, menos aqui”. Mas o PL foi apreciado pela Comissão de Relações Exteriores e Defesa, onde caiu nas mãos do conservador Hugo Napoleão (DEM-PI), que o rejeitou, e logo nas de Vitor Paulo (PRB-RJ): a decisão foi idêntica. O projeto estacou, ignorado, na Comissão de Constituição e Justiça.
Quando a Comissão Nacional da Verdade foi anunciada como a panaceia dos males históricos do País, Erundina saiu novamente ao ataque. No primeiro artigo do texto sancionado pela presidenta Dilma Rousseff em novembro de 2011, viu no dever de “promover a reconciliação nacional” um insulto às vítimas. “Que reconciliação é essa? Vai reconciliar torturadores com perseguidos políticos, em vez de puni-los? A anistia foi uma farsa. O poder estava com os militares. Sem mudar a lei, a comissão vai ser a continuação da farsa.” Como a lei parece longe de ser mudada, a deputada trilha um caminho próprio. Para pressionar o Congresso e o governo a investigar os agentes da repressão, criou a Comissão Parlamentar Memória, Verdade e Justiça. Foi acusada de querer “competir” com a comissão do Executivo. Ignorou. De oitivas de depoimentos, como a do ex-agente de informação Marival Chaves, a audiências com testemunhas da guerrilha do Araguaia, a subcomissão tem enchido pastas com documentos. “Mas não queremos ficar só no nível da memória. Queremos processos judiciais.”

Memória. Entre os lembrados por Erundina, o deputado Rubens Paiva (segundo da dir. para a esq.) em votação na CPI que faria dele inimigo dos militares. Foto: Arquivo Público do Estado de São Paulo

Figura histórica na luta por desmascarar os partícipes da ditadura, a paraibana de Uraiúna esteve à frente da investigação que se seguiu à descoberta da vala clandestina no Cemitério de Perus, em São Paulo, em 1990. À época, criou uma Comissão de Acompanhamento das Investigações, para fiscalizar a ação da polícia e colaborar com a CPI da Câmara Municipal. Um paralelo com a atual situação das comissões da verdade é inevitável. Agora, ela quer apurar as violações de direitos humanos com motivação política contra parlamentares, caso do deputado do PTB Rubens Paiva. Expoente da investigação da Comissão Parlamentar de Inquérito que apurou o recebimento ilícito de dólares por generais ligados ao golpe, Paiva não só foi cassado como, em 1971, foi levado por militares. O Exército divulgou uma nota fantasiosa, na qual atribuía o sumiço a um resgate dos companheiros “terroristas”. O que as testemunhas disseram depois é que ele morrera entre as torturas no DOI-Codi na “Casa da Morte” em Petrópolis. Seus restos mortais jamais apareceram.
Além dos desaparecidos, é justamente o papel institucional do poder legislativo durante a ditadura o que vem à tona com as investigações da subcomissão presidida por Erundina – e, provavelmente, só com elas. “O Poder Legislativo foi vítima e cúmplice da ditadura”, diz a deputada, peremptória. “Vítima porque foi fechado três vezes pelos ditadores. Cúmplice porque não reagiu, porque os que lá estavam não tinham compromisso com a democracia, e porque aprovou essa lei manca de anistia. A verdade é que nunca se fez nada.”
A história do Congresso durante a ditadura foi pouco feliz. Em 9 de abril de 1964, a junta militar que assumiu o poder no Brasil após o golpe decretou o que chamou de “Ato Institucional”. Além do anúncio de uma “revolução” que instaurasse o “poder constituinte” por meio das armas, o ato anunciava a cassação de 46 deputados federais: gente como Plínio de Arruda Sampaio, relator da Reforma Agrária, Leonel Brizola, articulador da Frente Ampla, e o próprio Rubens Paiva. O Congresso foi alijado de suas prerrogativas mais básicas, mas era só o começo. Em 1966, o general Castello Branco decretou o AI-2, que acabava com os partidos e agrupava o espectro político em duas legendas (Arena e MDB). Outros cinco deputados foram cassados e o Congresso, fechado por um mês. O AI-4 obrigaria os deputados a se reunir às pressas e encenar a aprovação de uma nova Constituição, que entraria em vigor em 1967 com a posse de Costa e Silva, “candidato eleito” de forma indireta por 294 votos pelo mesmo Congresso arenista.

Vácuo político. O Congresso foi fechado três vezes durante o período. Pouco fez em contrário. Foto: Reprodução


Não que todos os parlamentares sobreviventes à limpeza ideológica da ditadura se coadunassem com os desmandos militares. Num ato de ousadia incomum à cordata conduta que mantinha, a Câmara se negou, por exemplo, a conceder a licença pedida pela Presidência para que o deputado Márcio Moreira Alves fosse processado pelo discurso no qual questionara até quando o Exército seria “valhacouto de torturadores”. Foi um momento de orgulho, logo abafado quando o AI-5 entrou em vigor: a Constituição foi revogada e o Congresso, fechado por mais de nove meses. Uma terceira suspensão dos trabalhos parlamentares ainda se daria entre 1º e 14 de abril de 1977, espécie de pá de cal na imagem da instituição. E em 1979, a controversa lei da anistia de “dupla mão” foi aprovada. Um estrago que acabou soterrado com um silêncio, para muitos, incômodo.
“Quando o STF negou a revisão da lei da anistia, usou como argumento principal o fato de o Congresso ter aprovado a lei”, afirma Erundina. “Pois se a Câmara aprovou essa lei, é prerrogativa da própria Câmara aprovar a revisão da lei. E, enquanto não aprovam, precisamos lembrar a memória dos poucos que se posicionaram contra a ditadura. É nossa responsabilidade. Não podemos fugir dela.” Uma história que deve ser contada também por uma exposição de fotos sobre o período e um painel do artista Elifas Andreato nos moldes de uma “Guernica brasileira”. Um livro com biografias dos cassados será lançado.

Crítica da Comissão da Verdade pelo seu prazo curto (dois anos) e raio de ação reduzido, Erundina insiste nas comissões paralelas que pipocam nos estados e municípios e na que ela mesma preside. Longe das pressões existentes no Executivo, a deputada se guarda o direito (e o dever) de lutar no Congresso para expor as entranhas da ditadura. “Não queremos produzir mais um relatório encadernado para guardar no Arquivo Nacional, que é o que vai acontecer com a Comissão da Verdade. Queremos processos judiciais, queremos punir os torturadores”. Só isso pode evitar que essa “página infeliz da nossa história” se transforme em uma “passagem desbotada na memória das nossas novas gerações”, em uma paráfrase de Chico Buarque. “Ou se faz isso agora ou não se fará nunca mais. No Congresso, há forças que não têm interesse em resgatar a história. E no governo… eu sinceramente esperava outra postura da presidente Dilma. É uma pena.”

sexta-feira, 30 de março de 2012

A face civil da ditadura empresarial-militar

Tenho visto manifestações patéticas dos militares de pijama, no afã de comemorar os 48 anos do golpe empresarial-militar de 1964. Chegam a dizer que salvaram o Brasil de se transformar em uma ditadura comunista. Seria risível se este pretexto não tivesse precipitado o país em período de trágico retrocesso no seu desenvolvimento econômico, social, cultural e democrático.

Hoje é impossível rir do primarismo que regeu - e rege ainda - os argumentos dos defensores do período de exceção, que se transformou rapidamente em regime de força, perpetrando contra seus cidadãos o terrorismo de estado e todas as desgraças dele decorrentes. Gosto de lembrar que não havia luta armada enquanto não houve golpe dentro do golpe, que recrudesceu as relações entre o governo das armas e a sociedade civil que ele, teoricamente, deveria preservar e defender.

A parcela da sociedade brasileira que logo se configurou como a mais beneficiada pela ditadura foi a dos empresários. A dos ricos, que fizeram dos militares, seduzidos pelas promessas do poder, meros capachos executores de ordens para manter os movimentos sociais aniquilados, enquanto seus luminares colocavam em prática uma política econômica baseada no endividamento externo e na concentração da renda.

Delfim Neto, superministro civil da ditadura empresarial-militar, ouve atentamente o discurso de Costa e Silva

Contando com a cumplicidade dos meios de comunicação, o regime ditatorial empresarial-militar foi mantendo o povo alienado e alheio aos assassinatos dos opositores que ousaram se organizar em movimentos armados, assim como nos movimentos estudantil e do operariado. Os trabalhadores rurais, que vinham se organizando nas Ligas Camponesas, liderados por Francisco Julião, entre outros, foram alvos de perseguições e assassinatos, não pelos homens de baioneta em riste, mas pelas milícias contratadas pelos coronéis do latifúndio. 

A imprensa teve papel preponderante no controle do imaginário durante os governos ditatoriais. Basta lembrar que as vans do jornal Folha de São Paulo eram usadas para, além de carregar os pacotes de jornais distribuídos pela cidade, transportar os prisioneiros políticos antes e depois das sessões de tortura a que eram submetidos pelo DOI-CODI, DOPS e outros órgãos de repressão aos movimentos políticos.

Também gosto de lembrar - não que isso seja prazeroso - que havia civis a serviço das forças de repressão, infiltrados nos movimentos estudantis, nos movimentos operários, nos movimentos camponeses, nas mesas de botecos, nos bancos das universidades, dedurando estudantes, professores, sindicalistas... Foi fácil estender a deduragem aos desafetos, que não necessariamente tinham qualquer atividade política, mas cometeram o "erro" de desagradar este ou aquele policial civil, este ou aquele colaborador do regime.

Gosto de lembrar também - e isso não é prazeroso, mas me dá uma remota sensação de que a justiça poderia ser feita às vítimas da ditadura - dos empresários que não apenas apoiaram o golpe, mas também o financiaram. Um deles, mostrado no documentário Cidadão Boilesen , além de dar dinheiro para a famosa Operação Bandeirante (OBAN), tinha prazer quase sexual em assistir às sessões de tortura.

Gosto de lembrar ainda - e isso me entristece até hoje - da vala clandestina descoberta no cemitário de Perus, em São Paulo. Com certeza não estavam ali enterrados corpos de militares, mas de militantes de oposição, mortos covardemente, por tortura e/ou execução.

Gosto de lembrar - e isso me acende e renova a indignação ao longo deste quase meio século de impunidade - que, enquanto tudo isso acontecia, enquanto numerosos civis trabalhavam laboriosamente nos porões, junto com os também numerosos militares de variadas patentes, outros civis aceitavam comandar ministérios, como Delfim Neto - a montanha que pariu o rato do "milagre brasileiro" -, Armando Falcão, Ricardo Fiúza, Alfredo Buzaid, Leitão de Abreu, Ibrahim Abi-Ackel, Milton Campos, Karlos Rischbieter, Reis Veloso, Sinval Guazelli, Cirne Lima, Mário Henrique Simonsen, Roberto Campos, Amaury Stabile, Ester de Figueiredo Ferraz, Otávio Bulhões, Petrônio Portella, Ney Braga, Jorge Bornhausen, entre muitos outros. 

Houve também colaboradores que não ocuparam cargos, mas deram sustentação à ditadura civil-militar no Congresso Nacional, como Francelino Pereira, Antônio Carlos Magalhães, Bonifácio de Andrada, José Sarney, Flávio Marcílio, Luiz Vianna Filho, Aureliano Chaves, Magalhães Pinto, Arnon de Melo, Nelson Marchezan, Célio Borja, Tarso Dutra, Nilo Coelho, Rondon Pacheco,  Paulo Maluf - a lista é longa!

Muitos desses colaboradores de terno-e-gravata circulam desenvoltos, ainda hoje, pelos corredores do poder. Os outros, menos elegantes, escondem-se no anonimato e, de vez em quando, topam com alguém que os reconhece e os aponta como torturadores. Correm a esconder-se como ratos, sabedores de que é inútil negar seu passado escabroso.

Os militares, historicamente alinhados com a classe dominante brasileira, defenderam seus interesses, contra aqueles da maioria do povo trabalhador, ao perpetrar o golpe de 64. Colocaram-se, mais uma vez, além de capachos dos interesses dos EUA na América Latina, como bucha de canhão da elite nacional, diretamente interessada em manter com seu chamado "irmão do norte" as melhores relações. 

Por tudo isso, tendo em vista proximamente a instalação da Comissão da Verdade, defendo que sejam investigados todos os criminosos que permanecem impunes, militares e civis.


sábado, 3 de março de 2012

O passado é pedagógico III (e último!)


Alguns dias das férias, eu os passava na casa de minha avó materna, que morava no outro lado da cidade. Ela era dessas pessoas que sabem como fazer um neto ou uma neta feliz. Tinha comigo conversas longas e me deixava livre para brincar em um córrego que cortava a rua, junto com outras crianças dali. Todos nós andávamos descalços, brincávamos na terra e na água, jogávamos bola, jogávamos pedras no mato com estilingue, subíamos em árvores, soltávamos pipa e jogávamos bolas de gude. De tardinha, banho tomado, ficávamos ouvindo as conversas dos adultos nas varandinhas das casas ou na rua mesmo.

Meninos brincando - Candido Portinari
Uma vez, ao chegar para as benditas férias, os meninos e meninas da vizinhança só falavam de uma nova vizinha. A mãe era brava e a filha era linda como um anjo, eles nunca tinham visto mais bonita. A menina quase não saía de casa. Só ia para a escola de mãos dadas com a mãe, só voltava para casa com ela. Tinha a mesma idade que eu – uns dez anos. Loira, cabelos lisos e longos, olhos muito azuis, narizinho de boneca de louça... Ficava perto da janela e nós víamos, da rua, a mãe penteando-lhe os cabelos.

Um dia me enchi de coragem e, chegando perto da janela, falei com ela:

- Quer brincar com a gente?
- Não...
- Por que?
- Minha mãe disse que vocês são todos sujos e que devem estar cheios de perebas...
- Ah!
- E também eu não brinco com meninos, só com meninas.
- Ah...
- Se você quiser brincar aqui em casa, eu peço pra minha mãe.
- Não, não precisa falar... Eu gosto de brincar é aqui fora, na rua mesmo. Com os meninos.
- Tá. Tchau.
- Tchau.

E todo dia, quando brincávamos, sempre tínhamos de parar a bola para esperar a mãe passar com a menina que parecia um bibelô.

No ginásio, a coisa não foi muito diferente. Sim, sou do tempo do ginásio e estudava inglês e francês! Pelo menos a escola pública fazia a gente conviver com a diversidade: tinha gente muito mais pobre que eu, tinha negros, tinha feios. E tinha as meninas e os meninos ricos, que pareciam mais bem vestidos, bonitos e limpos dentro do mesmo uniforme. Dos professores, alguns foram marcantes: a de língua portuguesa dos dois primeiros anos sempre jurava que iria me reprovar; a de educação moral e cívica ficava a aula inteira repetindo o discurso da ditadura militar sobre os valores da pátria e da família – era preguiçosa, não escrevia no quadro de giz e nem se levantava da cadeira. Nos dois últimos anos do ginasial, o professor de português, além de me obrigar a aprender gramática e a gostar de escrever, me ensinou também a gostar de literatura.

Escrevo hoje pensando nele, professor João Rios, que, no início de cada ano, passava uma lista de livros para serem lidos até o final do período. Ninguém precisava comprar, estavam todos na biblioteca municipal. De vez em quando a bibliotecária, uma velhinha beata, exercia seu poder de censura e não deixava a gente levar os livros que julgava impróprios para menores. Tínhamos de ouvir um sermão sobre os valores da família cristã ameaçados pela má literatura. Aí o pau comia: seu João fazia uma visita à biblioteca e, quando voltávamos, a senhorinha estava uma seda. Líamos de Dostoievsky a Jorge Amado, de Camus a Graciliano Ramos, de Flaubert a García Márquez. De vez em quando, seu João fazia uma pausa nas aulas de gramática, sorteava um dos livros da lista e falava longamente sobre ele. Entenderam? Era um professor que nos fazia ler, mas não havia prova de leitura, nem fichamento de livro para avaliação, nada dessas coisas. E quando, nessa pausa, ele falava sobre um livro que eu já havia lido era como se abrisse novas janelas para o mundo. Para entender o mundo.



Não sei como eu conseguia ler quase dez livros por ano, nos dois anos que estudei com seu João. Eu era rueira, não parava em casa, tinha colegas e amigos pela cidade toda. Gostava de nadar no clube dos pobres. Lá, de vez em quando, apareciam técnicos esportivos, que nos ensinavam natação e vôlei. Eu acho que eram contratados pela prefeitura e que o clube era público, mas nunca me preocupei com isso. Houve um tal Eli, que ensinava as modalidades de natação e promovia até competições em cidades vizinhas. Teve também um seu Raimundo, que ensinava natação e vôlei. Era um chato, mas era bom técnico. Depois de anos que saí da cidade, tive notícia dele pela Internet, sempre ligado aos esportes.

Hoje meu irmão me conta que esse era um projeto do Ministério do Exército, durante a ditadura militar. Tratava-se de não deixar os jovens enveredarem pelo caminho da política, enquanto seu tempo era todo tomado por compromisso com os treinadores, que os levavam a competições e atuavam como verdadeiros preceptores, aproveitando as lições do esporte para ensinarem também valores, geralmente os mais reacionários, hegemônicos na época da ditadura militar.

Mas acho que isso não teve influência sobre mim. Enquanto praticava esportes e era, sem perceber, manipulada para ser despolitizada, tinha, em contrapartida, um valoroso professor de literatura me abrindo janelas para entender o mundo e fazer as escolhas ideológicas que me tornaram quem sou hoje.

Por isso posso dizer que sobrevivi a duas pragas: o preconceito social e a ditadura militar.



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico II

As reminiscências da época da escola primária continuam.

Minha vida escolar na pequena cidade foi muito proveitosa. Na época eu não tinha ainda condições de formar a visão da escola como espaço de reprodução das práticas sociais. Mas isso ficou muito claro um pouco mais tarde, e foi a partir do que vivenciei. Educação laica? Nem pensar. Era a escola – pública – que nos preparava para a primeira comunhão, assim como era no espaço escolar que se realizavam algumas das festas da igreja. 

Um detalhe cômico: a professora que me preparou para a primeira comunhão nos passava muito medo com a possibilidade de a hóstia ficar grudada no céu-da-boca:

- Se a hóstia gruda no céu-da-boca, é sinal de que houve mentira na confissão ou não teve arrependimento sincero...
- E como é que se faz, professora? Se grudar...
- Ah, se enfiar o dedão para soltar a hóstia, é pecado! Só pode passar a língua e, se não soltar, tem de esperar até derreter.

Quem, depois disso, ia se deixar flagrar com o dedo na boca? Todo mundo ia fazer cara de anjo, com a hóstia grudada lá, fingindo que não tinha acontecido. 

 
Era o mês de maio e, um dia, eu disse a minha mãe que queria ser escolhida para coroar a nossa senhora, vestida de anjo. Eu tinha mais ou menos nove anos.

- Você, minha filha? Para mim, ninguém merece mais. Você é linda mesmo como um anjinho. Mas não vai ser escolhida...
- Por que, mãe? Eu quero tanto!
- Por que, antes de escolher a criança para fazer isso, a escola manda um bilhete pedindo autorização dos pais...
- Então?... A senhora deixa?
- É que junto com a autorização tenho de concordar em comprar a roupinha, as asas, a tiara, o véu...
- E?...
- Isso custa caro, benzinho...
- A senhora não tem dinheiro?
- Não...
- Mas eu posso vender pé-de-moleque, mãe!
- Pode, bem, mas mesmo assim o dinheiro não vai dar...

Hoje faço ideia de quanto essa conversa custava para minha mãe. Mas eu nem pensava no constrangimento dela, quando cheguei da escola, contando como havia sido a cerimônia de coroação, enquanto ela terminava de fazer o almoço.

- Ah, mãe, foi lindo demais! A santa ficava lá, bem no alto da escada toda enfeitada de flores! Flores de todas as cores. A diretora ficava bem ao lado da santa e, do outro lado, o padre. As crianças todas em fila no pátio, cantando aquelas músicas da missa - “Vestida de branco ela apareceu...”
 - Imagino...
 - E depois veio subindo a escada devagar, a Maria Augusta, vestida de anjo, com o cabelo pretinho e bem liso embaixo da tiara brilhante... até no véu tinha umas florzinhas... ela foi subindo, uma túnica de cetim branco brilhando, brilhando... foi subindo, carregando uma almofadinha vermelha, de veludo, e em cima dela a coroa, que parecia de prata, e brilhava, brilhava... Tudo brilhava muito, mãe!
 - Sei... Foi bonito, então?
- Ah, foi lindo, lindo demais!
- Pois então... quem sabe no ano que vem você vai coroar a santa...
- É, mãe, quem sabe...
 
 
E quando minha mãe se virava para o fogão, mexendo as panelas, eu a interrompia de novo:
 
- Mas, mãe, por que a Maria Augusta foi escolhida para coroar nossa senhora? Ela nem parece anjo!...
 
Minha mãe não respondia, mas eu via que, mexendo sem parar as panelas, ela suspirava.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico I


Os fatos que passo a narrar não são ficcionais. Os nomes é que foram trocados, para que ninguém se sinta molestado. Nada mais verdadeiro que o velho ditado: "recordar é viver".


Na cidade em que nasci fazer literatura dava muito prestígio social. Aquela merdinha de lugar tinha uma academia de letras e seus membros se reuniam uma vez por mês, num velho prédio que tinha um piso também velho de tábuas que rangiam. Lá, saboreavam quitutes e liam uns para os outros poemas, trechos de romances “em processo”, contos, trovinhas, essas coisas. Detalhe: não havia uma mulher no grupo e os caras vestiam ternos para ir às reuniões, que aconteciam na noite da última sexta-feira de cada mês.

A gente, criança, ficava na porta do prédio, na rua principal, vendo os vinte e cinco chegarem, às sete da noite. Chegavam a pé, vindo dos dois lados do quarteirão, às vezes em dois ou três. Depois que contávamos os últimos, íamos para a sessão do cinema, no prédio ao lado, assistir pela quinta ou sexta vez ao mesmo filme de faroeste. Era bom. A gente assoviava, batia os pés no assoalho de madeira acompanhando a música e torcia para a cavalaria acabar com os índios.

O cinema era quase de graça. Também o filme ficava em cartaz mais de um mês. A gente podia ir porque era baratinho. Todo mundo limpinho, cabelos penteados, sapatos engraxados. Assim era mais fácil passar pelo Xaveco, uma espécie de vigilante de menores, que não deixava entrar criança com idade menor que a indicada pela censura. Parêntese: Sim, era tempo de censura a filmes, livros e qualquer forma de arte considerada ameaçadora. Fecha parêntese. E lá dentro, no escuro, era a maior farra. Bolinhas de papel de bala, traques, até pó-de-mico uma vez soltaram no cinema. Tinha um lanterninha que de vez em quando saía puxando um pela orelha, debaixo de vaias.

Minha cidade, quando nasci há mais de meio século, não era tão pequena assim. Digo, era pequena, mas tinha certa arrogância de sociedade bem frequentada por gente de fora, que praticava esportes de elite, como o tênis. Nasci em uma estância hidromineral, com águas termais e certa tradição turística. No balneário, um hotel enorme e caro, ligado ao prédio dos banhos, domina o cenário. Era lá que meu pai trabalhava de porteiro. E minha mãe, de camareira, em outro hotel, mais modesto, frequentado por funcionários públicos do estado.

Sou de uma família pobre: salários baixos, oito bocas para alimentar e algum conformismo fizeram com que nos aboletássemos numa casa modesta, com vizinhança igual à gente mesmo. Escola pública, longas caminhadas, filhos começando a trabalhar cedo, com doze ou treze anos. Mãe fazia pé-de-moleque pra gente vender na rua: o sol quente, o caminho de poeira, os vizinhos comprando mais por solidariedade que por necessidade.

Quando entrei para a escola comecei a aprender coisas que me seguiriam por toda a vida. Não as coisas que os livros traziam, mas outras. Tive uma professora que achava uma ofensa eu ser pobre. Como é que pode, uma menina loira de olhos verdes, tipo europeu, com sobrenome italiano? Se fosse preta ou mulatinha, a gente entendia... Ah! Dona Lola, sempre mal-humorada. Um dia, fui a única da turma que, no ditado, escreveu “piscina” com o “sc”. As riquinhas, que usavam sapatos de couro, saias plissadas e blusas brancas de algodão, todas erraram. Só a pobretona da saia pregueada, blusa de poliéster e sapato de borracha acertou.

- Onde você aprendeu essa palavra, menina?
- Numa placa lá da piscina que a gente nada.
- É? E que piscina é essa?
- Do tênis clube.
- Sei... aquela da água verde-escuro?
- É sim senhora. A gente nada lá. E tem uma placa escrito assim: “No recinto da piscina, somente com roupa de banho”. Foi lá que eu aprendi.

Dona Lola estava debruçada sobre minha carteira, com os grandes olhos castanhos muito perto da minha cara. Fechou a cara por um segundo, mas logo se aprumou e jogou a cabeça para trás, gargalhando duas ou três vezes. Quando olhou novamente para a frente, estava séria.

- Quer dizer que você lê placas, né? Muito bem.

Eu tinha oito anos e não entendi o que era aquilo. Só mais tarde, juntando outros episódios da minha vida, com outros personagens, é que eu viria a vislumbrar um certo ódio, maior que o simples preconceito, que fazia as pessoas não aceitarem uma criança branca, loira, bonita e... pobre! Era um problema lidar com isso: os ricos e remediados não admitiam que eu fosse pobre e os pobres não me aceitavam porque eu parecia rica. Mas foi mais fácil conviver com a garotada que andava descalça, encatarrada e moleca, do que com as professoras, as coleguinhas ricas, os padres, os professores e todos os tipos que tinham algum prestígio na cidade.

No grupo escolar, aprendi que aluno pobre, no recreio, brincava de um lado do pátio sem invadir o outro lado, isso depois de comer o arroz-doce ralo e quase cru servido só para os que eram da “caixinha”, os que não tinham dinheiro para levar seu próprio lanche. Também as turmas eram divididas em adiantadas e atrasadas e por coincidência nas primeiras estavam os filhos dos ricos e nas segundas os filhos dos pobres. O meu caso era uma chateação, porque me destacava na leitura e na escrita, o que obrigou a diretora a me colocar na turma dos adiantados. Daí minha inadequação, que incomodava mais os outros que a mim mesma. No geral, as professoras que tive nos primeiros anos escolares foram inexpressivas: só Dona Lola me marcou, pelo preconceito declarado e assumido.


O irônico desta história é que Dona Lola não era branca. Hoje tenho a certeza de que, com seus lábios grossos e sua pele parda, minha tão sensível professora era mestiça.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Nossa festa de fim-de-ano no Rio

Pela primeira vez, eu e Gilson passamos a virada do ano no Rio de Janeiro, famoso em todo o mundo pela festa de fogos de artifício e também pelos shows que promove nas areias claras da belíssima praia de Copacabana.

Chegamos à cidade no dia 28 e tratamos de passear um pouco antes da tão esperada festa. Primeiro demos um pulo até Petrópolis e visitamos lugares lindos, museus e a famosa rua Teresa, todinha cheia de lojas. Gilson jura que nós, mulheres, entramos em todas elas, mas vocês sabem como os homens são exagerados quando nos acompanham nas compras...

Impressionante como naquela cidade tudo gira em torno do passado monárquico brasileiro. Fiz questão de visitar minha xará mais famosa:



 Andando pela cidade, a gente pode até brincar com os vestígios do passado monárquico. Pensem no padre dentro desse confessionário, deve ter ficado louco com dois agnósticos falando ao mesmo tempo. Reparem na fisionomia de beatitude do João, parece até que se converteu:


Ao final da visita, depois de arrastar pantufas de feltro pelo enorme Museu Imperial, tivemos de fazer um esforço descomunal para não sermos tragados pelo passado, porque ainda faltava percorrer a rua das compras:


O retorno ao Rio foi uma aventura à parte, por causa da rodoviária carioca, que é um mundo caótico, onde é quase impossível conseguir um táxi sem cair nas mãos de algum grupo organizado, que não usa taxímetro, para poder furar o olho do freguês! Ainda bem que fomos salvos por um taxista que tinha ido deixar passageiros, honesto e simpático.

No dia seguinte, já de volta à casa da Priscila e do Elmar, na Gávea, aproveitamos o céu nublado e a garoa intermitente para dar uma volta pelo Jardim Botânico. Acreditem, foi bom demais! Aquilo lá é lindo mesmo! Não é à-toa que o grande Tom Jobim encontrava ali inspiração para compor:


Há recantos deliciosos de se ver e estar, como o lago das vitórias-régias:


E flores lindas para a gente fotografar:

No sábado descansamos o dia todo, guardando-nos para a festa da virada de ano. Pernas para cima, TV ligada, estripulias do Baco - o cãozinho da Priscila e do Elmar - e preparação de uma lasanha que ficou nos esperando em casa.

A parte engraçada foi que nos aprontamos para a festa, encaramos a chuva e a caminhada que nos levaria à praia. Táxi, nem pensar! Tínhamos de vencer 6 km até Copa. Saímos de casa por volta das 9 horas. Em frente ao clube do Flamengo demos a sorte de conseguir um táxi para um pedacinho do caminho. Ao retomar a caminhada, a gente se juntou a uma multidão vestida de branco, que andava debaixo da chuva sem se importar com ela, todo mundo no mesmo rumo: a praia em frente ao tradicional hotel Copacabana Pálace.

Pois bem. Nessa altura, eu já tinha dúvida sobre se o programa seria bom mesmo ou se estaria embarcando num programa de índio - força de expressão, porque penso que os programas dos índios nas noites de ano novo devem ser uma baita festa! Cheguei a perguntar ao Gilson se ele não pensava a mesma coisa, mas ele estava tranquilo: "A gente veio aqui foi para isso mesmo, né?" 

Enfim, desvia daqui, desvia dali, pula uma poça aqui, pula outra ali, molha os pés aqui, escorrega ali... Lá fomos nós, no meio da multidão toda branca. Eu tinha a vaga sensação de estar participando de algum ritual muito antigo e o leve incômodo de não saber bem dar sentido a essa  participação. O jeito era, como boa mineira, aproveitar a caminhada para "reparar" os tipos, as roupas, os sapatos, as fisionomias. Sim, porque mineiro não observa: repara.

Enfim chegamos! Praia lotada, mais cheia do que em dia de sol! Todo mundo já no clima da festa: muita alegria, bebidas e... chuva, chuva!
Sem dificuldade, alugamos quatro cadeiras e um guarda-sol e nos alojamos na areia, com nossos guardachuvas também abertos, porque a chuva estava insistente. Ficamos ali sentados, reparando tudo, conversando e tomando caipirinha - só Madá e eu. E a muvuca só aumentando. Quando foi chegando a hora dos fogos, o povo foi se juntando mais e quase que o espetáculo começa sem o Gilson, que tinha ido ao banheiro. Mal chegou aonde estávamos, iniciou-se a música e os foguetes pipocaram. Naquela hora, debaixo da chuva mesmo, tive a certeza de que tudo valeu a pena. Até filmei os momentos iniciais, que foram os mais lindos:



Foi lindo mesmo! E toda essa lindeza que coroou a chegada do nosso ano novo teve alguns momentos pitorescos, que nos fizeram rir até doer as bochechas. Como quando a Madá entrou em um boteco copo-sujo e pagou R$ 2 para usar o banheiro lá no fundo, entulhado de engradados e garrafas vazias; ou como quando, na volta para casa, ao aparecer um táxi que cobrava R$ 30 para nos levar até a Gávea - já estávamos na metade do caminho -, ao serem perguntados se pagariam, todos responderam em coro: "Claro!!!" Acho que todos estavam pensando naquela lasanha, que nos esperava no forno...

Assim foi nossa estada no Rio. Praia com sol, só no último dia. Aproveitamos os dias de chuva para passear no centro antigo da cidade, com direito a almoço na Confeitaria Colombo, num dia, 


e no Bar Luiz, no outro. 


A gente se divertiu muito, enquanto vivenciava um pouco do cotidiano do povo carioca. E foi bom aproveitar esses momentos junto com pessoas com as quais temos afinidades, como é o caso do João e da Madá. Valeu!

Em tempo: O Rio de Janeiro continua LINDO!!!