sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Menininhas

Hoje deixei de lado minhas leituras e escrituras, ando meio cansada de pesquisar a violência estrutural do Brasil na Literatura. Precisava de um tempo.

Foi por isso que trouxe as meninas para cá. Sofia e Laura me animam, colocam sorrisos em meu rosto, arrancam gargalhadas do meu peito.

Sofia já está crescida e às voltas com seu desafio atual: dominar os jogos na internet. Passa horas jogando, chamando "Vó, vem ver que legal!". E eu vou e curto com ela alguns clássicos dos games, especialmente o Mário Bros. e o Sonic.

Mas se invento de a gente fazer pão-de-queijo juntas, lá vem elas me ajudar. Sofia quebra os ovos e Laura fica esperando que eu termine de sovar a massa para ajudar a fazer as bolinhas. Ainda está aprendendo a falar, mas domina bem os diminutivos e repete sempre a última sílaba da última palavra das perguntas que a gente faz. "Você quer dormir?" E ela: "Mi". "Você comeu?" Ela: "Meu". "Vamos passear?" "Siá".

Lindinhas demais, essas meninas.

Às vezes fico a pensar em como seria minha vida se elas não existissem. Com suas vidinhas ainda tão breves preencheram intensamente um espaço na vida de minhas já preguiçosas retinas. Se a mãe delas tivesse ido para o exterior; se não tivesse conhecido o marido, se eu não morasse em Brasília... Se, se, se... Mas é tão intensa essa presença que já não é mais possível imaginar como teria sido a vida sem elas. Nessas tentativas a gente vê que o "se" não vale nada, mesmo. O que vale é o que é, não o que poderia ter sido nem o que parece ser.

Às vezes são elas que me educam.

"Vó, você tá desperdiçando a água do planeta."

Matar uma maria-fedida que entra no apartamento? Nem pensar.
"Tem que pegar a bichinha com um papel e devolver pra natureza, vó!"

Aí chega minha vez de educar.
"Vó, pra onde a gente vai quando morre?"
"Ah, a gente é devolvida pra natureza, querida!"
"É? A gente vira terra?"
"Melhor: a gente vira adubo para as plantas."
"Legal!"

Aos seis anos, esse é um diálogo possível. E honesto. Nada de virar estrelinha, nada de ir para um lugar maravilhoso chamado céu. Simples assim: adubo. Quer coisa melhor?

Levo-as para visitar nosso vizinho Davi, de um ano e três meses. Laura abraça e beija com tanta força o menino que o derruba para trás e cai por cima. Não choram, pelo contrário, dão risada com o tombo. Depois ela lhe tira da mão uma argola que ele levava à boca, dizendo algo como "Sujo!". Chuta a bola colorida e grita "Gol". E chama: "Maninha". Quando a mana atende, não quer nada, já esqueceu que chamou, distraída com os brinquedos e o menininho.

Dou risada durante todo o tempo em que estou com elas. Esqueço a violência estrutural apreendida pela Literatura, nas obras que vem desde
Os sertões.

Mas sei que, enquanto curto esse presente que a vida me deu, ela, a violência, continua lá fora...

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

De costas para a parede...

Tem dias em que há tanto assunto que fica difícil escolher sobre o que falar aqui.

Primeiro, o carnaval de Brasília foi ótimo. Nem vi a folia, mas passei os cinco dias de feriado em estado de graça, vendo nos noticiários: "Hoje o governador - licenciado - José Roberto Arruda recebeu apenas a visita da mulher dele, Flávia Arruda, que foi à PF levar seu almoço". O homem está lá, quem diria, preso! Nunca antes na história deste país... eu tinha visto um notório criminoso rico ser preso e - mais importante - permanecer preso, sem os famosos
habeas corpus do presidente do STF para limpar a barra.

E nem foi preciso esperar que terminasse a semana para sacar que o vice-governador, Paulo Octávio - aquele da Operação Uruguai, junto com Luiz Estêvão, na época do impeachment do Collor, lembram? - não aguenta uma semana no cargo. Também ele está "de costas para a parede" tentando se defender das sérias denúncias de envolvimento nos crimes da Caixa de Pandora.

Por falar em "de costas para a parede", há muitos aqui em Brasília nessa posição defensiva. Por onde anda o "ético" Augusto Carvalho, secretário de saúde? Sumiu... E o Prudente, prudentemente escondido, cadê? Por onde anda o recém-casado Luiz Valente, ex-secretário de educação? Sumiu também... (Veja aqui um video do caro casamento e curta o modelito da distintíssima noiva).



Se você for à Câmara Legislativa do DF - aquela que se fingiu de égua e agora, com a ameaça de intervenção federal, tenta instalar uma comissão para acolher os pedidos de impeachment - vai encontrar 80% dos deputados encostados na parede. Uns, para não cair de preguiça, outros para não serem cassados.

Aqui em Brasília as conversas correm. Soubemos que a digna Eurides Brito estava em depressão, por ter virado marchinha do Pacotão. Deve ter doído muito ver os foliões carregando bolsas transbordantes de dinheiro... O Arruda está também deprimido, porque tinha certeza de que não ficaria mais de um dia preso. Corre à boca pequena que cantarolava sem parar aquela música do Chico Buarque: "Pra mim, basta um dia... Não mais que um dia... Um meio dia..." De repente, ficou mudo.

Dizem coisas também sobre o jornalista Sombra, tratado pela mídia como o algoz de Arruda, o homem que botou mais lenha na já crepitante fogueira da PF. Bem, dizem que é rorizista de carteirinha. Parou de agir na sombra para que
il capo possa ficar quietinho, curtindo o prazer de ver a derrocada do arrogante careca.

Às vezes tenho a sensação de que tudo isso a que assistimos na capital do Brasil é apenas mais uma briga de gangues. Disputa de território? Não, disputa pré-eleitoral para garantir a apropriação da coisa pública nas eleições deste ano. É uma gangue cujos membros não confiam nem uns nos outros, vários são os episódios de esfaqueamento pelas costas entre eles - lembram-se de quando Roriz teve que renunciar ao Senado? Pois então...

Mas desta vez há novos e inesperados atores no espetáculo da degradação política patrocinada por essa "vanguarda do atraso": a PF, o Ministério Público e a OAB. Emergem como forças novas e diferentes, quebrando, pela primeira vez em muitos anos, a hegemonia dos gângsteres.

Aguardemos a promissora próxima semana...

* * *

Em tempo - Hoje foi dia de soltar mais um foguete daquela caixa que fica guardada em um vão qualquer: passou para o andar de baixo o general Ivan de Souza Mendes, último chefe do famigerado Serviço Nacional de Informação - o temível SNI dos tempos da ditadura empresarial-militar.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O sonho americano e o quintal dos EUA

Aproveitei o feriadão do Carnaval para ver alguns filmes, além de Garage Olimpo, que já comentei aqui.

Um deles chama-se
Foi apenas um sonho, mas o título em português simplesmente "entrega" o final da história. O original chama-se Revolutionary Road (2008, EUA, Direção: Sam Mendes. Elenco: Kate Winslet, Leonardo di Caprio, Kathy Bates. 119 minutos). É uma adaptação do romance de mesmo nome, de Richard Yates, de 1961.


Trata-se da história de um jovem casal, na década de 50. Era o início do sonho americano, da construção do
american way of life, com o avivamento da economia dos EUA e a promessa eufórica de qualidade de vida para todos os americanos. Por qualidade de vida entenda-se uma casa no subúrbio da cidade grande e todos os bens de consumo que a recheiam, para o bem estar da mulher e dos filhos, enquanto o marido passa o dia fora, no trabalho em um dos escritórios do centro.


O vazio e a falta de sentido invadem a relação do casal, inicialmente com a frustração do sonho da mulher de ser atriz de teatro. Depois com a insatisfação do marido com as atividades repetitivas e inócuas da empresa em que trabalha. Como reação a esse vazio, constroem o sonho de vender tudo o que possuem e se mudar para Paris. E vivem intensamente esse sonho, sem perceber que voltaram a ser felizes e passaram a incomodar as pessoas com quem convivem.

Bem. Já perceberam por que o título em português "entrega" o desfecho da história? Mesmo assim vale a pena ver, porque o final é uma bofetada. Imaginem o impacto desse romance, quando foi lançado nos EUA, no auge da euforia com o sonho americano...

Mas, enquanto o romance de Richard Yates fazia a crítica do
american way of life lá nos EUA, aqui eram as ações golpistas dos diplomatas e agentes secretos americanos que provocavam altíssimo impacto. Era a época das conspirações para a derrubada dos governos democráticos da América Latina e a instalação de ditaduras militares em todo o continente, que generalizariam as perseguições políticas, a tortura e o assassinato dos opositores.

E é desse contexto histórico que trata o filme de Konstantinos Costa-Gavras,
Estado de Sítio, produzido em 1973 e lançado em DVD em 2005 (Etat de Siège. Itália, Alemanha, França. Direção: Costa-Gavras. Elenco: Yves Montand, Jaques Weber, Renato Salvatori e outros. 119 minutos).

A história gira em torno do sequestro do Cônsul do Brasil em Montevidéu, juntamente com o do agente americano Dan Mitrione, que culmina na morte deste último pelo movimento guerrilheiro Tupamaros. Os diálogos do agente com seus carcereiros são elucidadores do modo como agiam as centenas de americanos espalhados pela América Latina nas décadas de 60 e 70, principalmente.

É sabido que esse agente era professor de "técnicas de interrogatório" - leia-se
tortura - e, antes de ir para Montevidéu, trabalhou para os órgãos de repressão da ditadura empresarial-militar brasileira, em Belo Horizonte, onde, até há pouco tempo, era nome de rua.


Costa-Gavras estava pesquisando a história de um embaixador americano, John Peurifoy, que trabalhara ativamente no golpe de estado que instalou a ditadura grega. No meio das pesquisas, topou com o nome de Dan Mitrione e menções à USAID - United States Agency for the International Development. Resolveu então ir ao Uruguai e, conhecendo a história, achou-a mais interessante para o filme do que a do embaixador americano. O resultado disso é o painel das ações das ditaduras latino-americanas, com destaque para Uruguai e Brasil, que o filme nos oferece.

É preocupante que o tempo esteja passando sem que o Brasil revolva os entulhos do autoritarismo da ditadura empresarial-militar. As novas gerações sequer imaginam o que é viver sob o domínio do terrorismo de estado, como viveram brasileiros, uruguaios, argentinos, chilenos e todos os outros países que sentiram o peso dos tacões dos coturnos. A diferença é que em alguns deles os responsáveis são apontados à luz do dia. Aqui, muitos deles hoje estão aí, com máscaras de democratas.

É preciso não esquecer!