sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Entra ano, sai ano...



Com esse título, eu tinha escrito um texto sobre mudanças de ano e o que representa, para mim, esta mudança de hoje, em particular.

Estava um texto bonito e claro, com uma imagem que remetia ao mito de Sísifo.

Havia também cinco exemplos de como a primeira década do terceiro milênio preparou o terreno para mudanças significativas, nos planos individual e coletivo.

Mas... perdi o texto todo, depois de prontinho... Eita frustração!!!

Pensei: "hoje não é meu dia! Não vou escrever nada!"

Melhor o último dia do ano do que todo um ano ruim, né não?

Por isso, aqui vai meu desejo de que tenhamos todos um ano novo com alegria para nos impulsionar e força para as lutas que virão.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Qual é a lógica, Agnelo?

Acompanho a formação do secretariado do futuro governador de Brasília, Agnelo Queiroz, com algum interesse e, também, alguma decepção. Penso que em toda indicação deve haver uma lógica, que sempre procuro entender, embora nem sempre concorde com ela.

Assim, entendo a indicação de nomes do PMDB para certos cargos. Em Brasília, todo mundo sabe quem é honesto e quem não é, no trato com a coisa pública. É possível até prever que nomes se envolverão em escândalos de denúncias, no caso dos peemedebistas escolhidos para compor o secretariado.

Como o leque das alianças foi muito amplo - desnecessariamente, a meu ver, porque era previsível que Roriz ficaria inelegível sem tempo suficiente para construir um substituto -, o futuro governador agora trata de contemplar todos os partidos que o apoiaram na campanha. Nada mais justo, desde que todos os integrantes sejam avaliados no primeiro ano de mandato e, caso não estejam à altura dos cargos que ocupam, sejam devidamente defenestrados deles.

Como vemos, leitores e leitoras, toda indicação tem sua lógica. Menos uma, a meu ver: a indicação de um integrante do PPS para o secretariado. Por mais que pense e reflita sobre isso, não consigo atinar com a lógica por trás da iniciativa. Que diabos!

O PPS é um partido que fez parte dos piores governos da história recente do DF. Basta lembrar que Augustus Contasabertas era um dos secretários do cassado Arruda. E que sobre ele pesam acusações de complicada defesa, no âmbito da Operação Caixa de Pandora. No hiato de sua saída do ex-governo Arruda e a nova eleição, os políticos do PPS ficaram sem pai nem mãe. Cães lazarentos que ninguém queria por perto. E não é que correram a se oferecer para compor a coligação que elegeria Agnelo Queiroz?...

Minha surpresa foi eles terem sido aceitos na coligação. Não eram necessários, não traziam contribuição alguma à campanha. Pelo contrário, a presença deles comprometia ainda mais a já fragilizada força ética da coligação. De fato, nem campanha fizeram. Cansei de ver carros de militantes do PPS portando adesivos que pediam votos para Agnelo e... Serra! O partido era de oposição ao governo federal, mas teve candidatos na coligação das forças políticas que combatia. Impressionante! Alguém me explica essa lógica?

Agora me surpreendo com a indicação de um deles para secretário. O outro, felizmente, não se elegeu, mas eu não me surpreenderei se voltar ao trato com a coisa pública pelas mãos do futuro secretário. E eu gostaria de alertar Agnelo para a bobagem que está fazendo: colocar esse pessoal no seu governo é trazer a oposição golpista para dentro da máquina pública, deixando-a à vontade para todo tipo de sabotagem, para dizer o mínimo.

Provavelmente Agnelo Queiroz não é leitor deste blog. Minha esperança é que alguém faça chegar a ele estas reflexões, de modo a saber que, para além das costuras políticas que o ocupam neste momento, há pessoas que esperam muito de seu governo, principalmente pela promessa ética que sua eleição descortina para o Distrito Federal.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Vai um drops aí?


Perdoem-me os pacientes leitores, mas há períodos em que a gente fica sem tempo para esta prazerosa atividade, porque outros afazeres nos chamam e prendem a atenção. Daí as lacunas entre as postagens, não sem o firme propósito de um dia vir a regularizar esta produção. Quanto mais tempo passa, mais assuntos se acumulam e não resisto a falar pelo menos um pouquinho de cada um. Então, hoje é dia de drops!

* * *

Finalmente pegaram o Gim Argello, confortavelmente instalado na relatoria da comissão de orçamento da Câmara dos Deputados, aprontando a maior lambança com os recursos públicos, de conluio com empresas de fachada, alaranjadas. Demorou, caros leitores! Se as investigações não pararem, serão descobertas coisas do arco da velha: quem viver, verá. Aliás, há outros políticos de Brasília, que também estão confortavelmente na ativa, tranquilamente reeleitos, que merecem uma investigaçãozinha básica. Quem sabe a nossa tão combativa imprensa, sempre vigilante no que é acessório mas relapsa no que é essencial, resolva fazer um pouquinho mais de jornalismo investigativo...

* * *

Por falar em políticos de Brasília, vocês precisam ver - e aqueles que já viram hão de concordar comigo - o quanto esta cidade está abandonada. O mato está mais crescido do que nas áreas de proteção ambiental! Na minha quadra, ontem, tive que ficar de olho para a Laurinha não se afastar de mim durante o passeio, com receio de que ela se perdesse no matagal que viceja sob minhas janelas... Controle de pragas? Não, não há! Varrição de rua e coleta de lixo? Tsc, tsc! Desentupimento das bocas-de-lobo para escoar a água da chuva? Também não! Buracos no asfalto, que se agravam nesta época do ano? Cheiiiinho! Enquanto isso, o governador-tampão Rogério Rosso apressa o envio de projetos, no mínimo, suspeitos para a Câmara Legislativa. Recentemente foi revogado o decreto que obrigava às eleições diretas nas escolas públicas, porque estava na cara que era um jeitinho de acomodar as bases rorizistas nos cargos de diretores, na maior cara-dura! Eita ano que não termina! (Perdoe-me o Zuenir Ventura, mas o ano que não terminou não foi apenas 1968, para o bem e para o mal...)
* * *
Isso sem falar na proliferação das cracolândias. A população está abandonada, sem política de saúde pública, de moradia, de transporte, de educação. A escalada das drogas é visível, também nas ruas do Plano Piloto, não é mais exclusividade da periferia. Abandono é a palavra para definir Brasília hoje.
* * *
Fico sempre desolada quando alguma escola pública obriga os alunos a participarem daquelas festinhas pseudo-educacionais, mas sempre de cunho religioso. Educação laica. Qualquer dia destes vou escrever sobre esse assunto. Hoje eu soube que um conhecido, temeroso de colocar seu filho em uma escola pública que não respeite a sua não-crença, estará acionando o MP para tentar garantir que não haja abordagem da religião nas escolas. Esta semana vou entrar em contato com ele para oferecer meu apoio nessa solicitação. A polêmica promete ser boa, com aqueles pais que preferem terceirizar o ensino religioso e pensam que a escola é que tem obrigação de fazer isso. É ou não é uma interferência indevida das atividades privadas sobre o espaço público?...
* * *
Lidar com perdas é a coisa mais difícil, né não? Perder a hora, um brinco, uma roupa que não fecha mais, um sapato que quebra o salto, a comida esquecida no fundo da geladeira, a flor que secou porque me esqueci de regar, o dinheiro que caiu do bolso por descuido, o telefone celular esquecido no balcão da farmácia, tudo isso tem conserto, tem remédio, tem jeito, tem superação rápida da frustração. O que não dá é para lidar com a perda de pessoas, seus afetos, seus trejeitos, suas risadas, seus humores, suas brigas, suas mágoas, seus amores. Ai, como dói!
* * *
"Tá relampiando, cadê nenen?
Tá vendendo drops no sinal pra alguém..."
(Lenine)

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

O Pacheco esteve aqui!

Na noite da última quinta-feira, 25/11, parei tudo que me ocupava e fui para a Escola Classe da 304 Norte, a 100 metros da minha casa, participar de evento da maior importância para a educação brasiliense.

Trata-se da escola pública em que a Sofia, minha neta, vai estudar a partir do próximo ano. Nela estudaram também minhas filhas, nos anos 80 do século passado.

(Ai! como o tempo voa! Já sou uma pessoa que fala com a maior naturalidade de coisas que vivenciei "no século passado"!)

Já naquela época a escola reunia um grupo de pais e mães de alunos muito participativos, preocupados com a qualidade da educação. Mas preocupados, acima de tudo, em que a escola se tornasse um espaço não de reprodução das relações sociais, e sim de questionamento permanente dessas relações. Não queríamos a escola que "padronizasse" nossos filhos, mas que nos ajudasse a dar-lhes uma formação cidadã, crítica e autônoma. Notem: isso foi lá pelos idos de 1985-88.

Houve boas brigas. Fomos a primeira Associação de Pais e Mestres a utilizar o instrumento jurídico da ação popular, instituída pela Constituição de 1988, para obrigar o governo do DF a negociar com o Sindicato dos Professores, em greve havia 45 dias. O difícil foi desmentir a imprensa local, que dizia ser essa uma iniciativa para acabar com a greve, contrária ao movimento dos professores. Nossa APM também resistiu contra a exoneração da diretora da escola, nossa querida e comprometida Bete, rechaçando a vinda de uma interventora nomeada na calada da noite pela então Fundação Educacional do DF. Foram muitas reuniões, muita discussão, muitas idéias, muitas iniciativas inovadoras. Não me queixo daqueles anos: graças a esse movimento minhas filhas se tornaram boas leitoras, críticas, politizadas e sensíveis.

Mas vamos ao Pacheco. Ele foi diretor da
Escola da Ponte, em Portugal, desde sua criação, em 1976, até há pouco mais de dois anos. Não preciso falar aqui dessa escola, já por demais conhecida pelos educadores brasileiros. Suas palestras são muito concorridas, professores e estudantes gostam de ouvi-lo falar, empolgam-se com o relato de suas vivências, de como se tornou educador "por vingança", de como a escola que dirigiu deixou de ser "um lixão" para se consagrar como modelo de uma educação emancipadora, trabalhando com conceitos libertários de disciplina e responsabilidade, enfrentando a violência presente no dia-a-dia das comunidades excluídas. Pacheco fala com muita convicção, com muita paixão, com forte embasamento crítico-teórico.

Esse educador português fez questão de realçar em sua palestra o grande número de iniciativas inovadoras em educação, dizendo que há no Brasil muitas "escolas invisíveis", que conseguem bons resultados com seus alunos rompendo os padrões estabelecidos da educação alienadora. E a boa nova é que ele participará de um projeto conjunto da Escola Classe 304 Norte e a Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, como apoiador da direção, dos professores e dos pais dos alunos, na prática educacional do diálogo, da solidariedade e da autonomia. E a minha filha faz parte do grupo de pais que correram atrás de um projeto novo para a educação de seus filhos. E é para a turminha da Sofia que primeiro se descortinarão as mil novas possibilidades de aprendizagem e de "ensinagem", como diz o Pacheco, sempre brincando com assuntos sérios.

Ao final da palestra, fui tomada por aquela sensação de estar conhecendo pessoalmente alguém com quem vinha mantendo, pela leitura de seus textos, sintonia fina, desde muito tempo. A sensação de conhecer aquele professor, de compartilhar suas expectativas, de ser solidária com sua história, com sua formação de esquerda, com suas propostas para a educação. E não pude resistir a uma pergunta emocionada:

- Onde é que você estava em dezembro de 1985, quando um grupo de jovens pais e mães de alunos desta escola iniciava intuitivamente uma revolução na forma de educar seus filhos?

Hoje, 25 anos depois de vivenciar tantas angústias, tantas dúvidas, tanta insegurança e de lutar com convicção contra a educação que tínhamos certeza de não querer, vejo que não tivemos José Pacheco - ocupadíssimo em revolucionar a educação em Portugal -, mas vieram em nosso socorro Paulo Freire, Anísio Teixeira, Darci Ribeiro, Demerval Saviani e Lauro de Oliveira Lima; com este último aprendi que "o homem está em permanente reconstrução: por isso é livre: liberdade é o direito de transformar-se".

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Chico, o Jabuti é seu!

Vamos aos fatos.

Existe um prêmio para livros no Brasil, o Jabuti, desde 1958, que consagra os melhores de um conjunto de 21 categorias, por ano. Em 2010 tivemos a 52ª edição, que premiou escritores de diferentes áreas do conhecimento. Pois bem, na categoria Romance, o resultado divulgado pelos três jurados foi o seguinte:

1) Se eu fechar o olhos agora, de Edney Silvestre;

2) Leite derramado, de Chico Buarque de Holanda;

3) Os espiões, de Luis Fernando Veríssimo.

Além de premiar os três primeiros classificados com a famosa estatueta, o Jabuti escolhe também o "livro do ano" em cada uma das categorias. Aí é que entra a premiação em dinheiro, com 100 mil reais para o primeiro lugar. O júri que faz a escolha do livro do ano é o chamado "júri profissional": em vez dos três jurados que classificam os ganhadores da estatueta em cada uma das categorias, trata-se agora do voto de todos os associados das organizações responsáveis pelo Jabuti, ou seja, a própria Câmara Brasileira do Livro, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros, a Associação Nacional das Livrarias e a Associação Brasileira de Difusão do Livro. Não é pouca gente, de jeito nenhum.

Este ano o Jabuti teve ainda uma novidade: o "júri popular", que contabilizou mais de 5 mil votos, via intenet.

Leite derramado, de Chico Buarque, foi vencedor tanto na votação do júri profissional quanto na do júri popular. Por isso consagrou-se como o livro do ano de 2010.



Mas um representante da Record, editora do livro de Edney Silvestre, não gostou nem um pouco do resultado que deu a vitória a Chico. Está questionando a CBL, embora tivesse conhecimento dos critérios de escolha dos vencedores com bastante antecedência à votação e divulgação do resultado. O protesto desse senhor resultou em um abaixo-assinado que circula na internet, intitulado "Devolve o Jabuti, Chico". Dei uma olhada no documento, cuja argumentação é pífia. Não convence nem a mim, quanto mais ao Chico! Além disso, passei os olhos pelos signatários e - por que não me surpreendi? Está na cara que o documento é forjado, pois se diz "informal" e dispensa as pessoas de colocar seus nomes na íntegra. Brincadeira! Ou melhor, mais uma das investidas da direita cansada, agora de dedo em riste para o Chico.


Que me perdoe o Sr. Sérgio Machado, mas seu esperneio está me parecendo mesmo "choro de perdedor", como disse o curador do prêmio Jabuti. E a Record bem que podia passar sem essa; afinal é uma honra ser vencido pelo grande escritor em que Chico se transformou, na melhor linhagem machadiana. Uma nau de arte literária em um mar em que bóiam tantos grumetes pós-modernos.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Exercício de criatividade

Hoje não escreverei sobre nada. Apenas proponho aos leitores um exercício de criatividade, a partir da imagem que recolhi na internet e que faz alusão a acontecimentos recentes no Brasil.

Cada um tem plena liberdade de escrever aquilo que lhe vem à cabeça quando vê isto:



Então, mãos à obra. Espero receber contribuições interessantes nos comentários.

domingo, 17 de outubro de 2010

O mundo sem José Ângelo Gaiarsa




Veio hoje a triste notícia da morte do psicanalista José Ângelo Gaiarsa. Encerrou-se assim um capítulo de avanço na história dos costumes da vida nacional.

Ângelo Gaiarsa promovia na mídia uma discussão avançadíssima, posicionando-se contra a virgindade e a favor da liberação sexual. Culpava a instituição família pela repressão da sexualidade e classificava-a como fonte de todas as neuroses e psicopatologias. Despertava a ira dos setores conservadores da sociedade - esses mesmos setores que hoje fazem campanha deslavada para Serra, como a(s) igreja(s), a TFP e a Opus Dei.

Gaiarsa foi o primeiro no Brasil a trabalhar com a psicologia analítica de Carl Gustav Jung e com a terapia da sexualidade de Wilhelm Reich. Publicou muitos livros sobre corpo, sexualidade, terapias analíticas, sempre em linguagem acessível ao público leigo, com leveza e humor, mas sem jamais perder a seriedade.

Muitas mulheres e homens da minha geração hoje são bem resolvidos graças a dois fatores importantíssimos: a invenção da pílula anticoncepcional e os textos de José Ângelo Gaiarsa. Onde quer que ele esteja agora, meu desejo é que usufrua de uma eterna felicidade orgástica!


A política no século XXI

Quando adolescente, eu costumava fantasiar sobre como seria a vida no século XXI. Em um mundo tecnologicamente desenvolvido, eu pensava que não haveria mais pobreza, nem religião, nem concentração de riqueza e de terra, nem falta de pão e trabalho. Mas já faz muito tempo que eu tinha essas fantasias e hoje vejo que era uma adolescente com alguma fé no ser humano e naquilo que lhe dá sua qualidade intrínseca: a humanidade.

O tempo se encarregou de desmentir minhas expectativas e me obrigar a colocar os pés no chão assustador da realidade, ainda muito jovem, quando me dei conta de estar vivendo com toda a intensidade os tempos da ditadura empresarial-militar que, pela supressão das liberdades e direitos individuais e coletivos, dominou o Brasil de 1964 a 1985.

Qualquer pessoa com um mínimo de independência intelectual não hesitaria em se posicionar contra o regime empresarial-militar, em lutar pelo retorno à democracia, em apoiar os movimentos populares duramente reprimidos quando da derrubada do presidente João Goulart. Assim o fizeram milhares de estudantes secundaristas e universitários, levados pela violência do regime a adotar a luta armada. Era uma guerra, sim, o que estávamos vivendo. Guerra muito desigual, porque o lado opressor contava com a cumplicidade do capital e dos meios de comunicação. Basta dizer que as organizações Globo e Folha da Tarde (hoje Folha de São Paulo) foram notáveis colaboradoras dos militares, contribuindo para fixar no imaginário popular a imagem dos opositores como "guerrilheiros", "terroristas" e "bandidos".

Hoje vejo jovens que sequer imaginam o que é viver sob uma ditadura repetindo nas redes sociais da internet os bordões daqueles que oprimiram o povo brasileiro por duas décadas. Isso me deixa perplexa! No jogo político-eleitoral que vivenciamos, o vocabulário repressivo dos militares foi reativado nos discursos, nos artigos de jornais e nos noticiários televisivos. O quadro é claro: há de um lado o candidato dos conservadores, que pugna contra o desenvolvimento brasileiro dos últimos oito anos; de outro, a candidata que representa a manutenção e a continuidade das políticas públicas que possibilitaram esse desenvolvimento.

Neste momento importante da vida nacional, que é o segundo turno das eleições, saem das sombras atores políticos inimagináveis. As igrejas adquirem dimensão inusitada, em pleno século XXI. As acusações irresponsáveis afloram por todos os lados. Esquecem os acusadores que não estamos elegendo o líder de um estado autocrático, mas o chefe do poder executivo que deverá governar em sintonia com os demais poderes da república. Jamais um presidente ou presidenta poderá impor políticas públicas sem o respaldo desses outros poderes.

Mas não. Os arcebispos/bispos e pastores ultraconservadores preferem abusar da ignorância dos fiéis a esclarecer-lhes que não vivemos em um estado teocrático e que, durante suas escolhas, estão exercendo o mais valioso dos poderes que sua condição humana lhes permite exercer: o livre-arbítrio. Preferem embotar a mente dos que creem nos ensinamentos religiosos com o veneno do preconceito mal disfarçado de pregação religiosa.

E devagarinho, depois que grande estrago já está feito, vamos descobrindo as ligações perigosas entre as religiões e os políticos. Assim é que o pastor Malafaia surge como alvo da promessa de concessão de um canal de TV só para suas pregações; assim é que o arcebispo Fergonzini, de Guarulhos, é desmascarado por ter como financiadora da impressão de seus panfletos caluniosos uma organização integralista, ou neofascista, usando uma gráfica cuja proprietária é filiada ao mesmo partido de um dos candidatos. E mais a pergunta que não quer calar: quem financia toda essa baixaria?

Pois é. Estamos vivendo um processo político-eleitoral no século XXI cujo maior mérito é desnudar o caráter medieval que continua presidindo as relações política-igreja(s) no Brasil contemporâneo. É uma arena em que a sinceridade não tem vez e leva até os ateus mais notórios a fingirem que são candidatos ao papado e não à presidência da república. Enquanto isso a mídia acumpliciada fecha os olhos e finge não existir uma perguntinha básica, a ser respondida por um dos candidatos: quem é Paulo (Preto) Sousa e o que ele sabe?

Nunca disfarcei neste espaço a minha posição política. Todos os meus 29 leitores inscritos e também os outros não inscritos sabem que voto em Dilma Rousseff porque, neste momento, é ela que representa a continuidade do melhor governo que o Brasil já teve, o governo mais fiscalizado pela mídia, o mais criticado, o mais caluniado. Eleita, Dilma enfrentará as mesmas críticas e calúnias, agravadas pelo fato de ser mulher.


Não tenho mais ilusões. O Brasil tem demonstrado que ainda não tirou o pé do passado escravista, racista e classista. Mas temos que lutar - e muito - para termos o verdadeiro estado laico. Nenhuma religião tem propriedade exclusiva do cristianismo. É preciso não confundir a instituição "igreja(s)" com os ensinamentos que ela tão habilmente deturpa, em prejuízo do povo brasileiro.

domingo, 10 de outubro de 2010

Tem livro novo na praça...

Tenho o prazer de convidar meus 28 leitores inscritos e também os outros não inscritos para o lançamento de novo livro. Neste eu me despeço de Graciliano Ramos, com alegria, depois de quase seis anos de intensa e frutífera convivência.


São dois livros em uma caixa: um é a reedição de Homenagem a Graciliano Ramos, publicado em 1943, em apenas 500 exemplares - livro raro, portanto. Contém os discursos proferidos no jantar em homenagem ao grande Graça, que aconteceu em março de 1942, no restaurante Lido, no Rio de Janeiro.

O outro, Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem, traz comentário sobre o discurso de Graciliano no referido jantar, por Hermenegildo Bastos, a devida contextualização daquele evento no Brasil da época, por Leonardo Almeida Filho, e o levantamento dos dados biobibliográficos dos presentes ao jantar, por esta que vos fala, mostrando que lá estava o grosso da intelligentsia brasileira, para o devido desagravo ao escritor, que havia sido preso pela polícia política do governo Vargas.

A edição está primorosa, caprichadíssima!

O lançamento, como vocês podem ver no convite, será no Espaço do Autor da Feira do Livro de Brasília. Apareçam!

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Curso com a Turma Augusto Boal, do MST

Na semana de 12 a 18 de setembro, estive novamente com a Turma Augusto Boal, na Universidade Federal do Piauí. Foi nosso último módulo da disciplina Literatura no curso de licenciatura em Artes para os integrantes do MST.

Trabalhamos inicialmente com o texto "A nova narrativa", do nosso querido Antonio Candido, e dele retiramos alguns conceitos fundamentais para o entendimento da narrativa contemporânea. É impressionante o quanto os alunos valorizam a contribuição crítica deste que é, hoje, o maior intelectual brasileiro, militante e comprometido.


Depois de Candido, defrontamo-nos com Clarice Lispector. Primeiro, o "aperitivo": o conto "Felicidade clandestina", que motivou comentários muito interessantes, sobre as relações de dominação/opressão baseadas na posse: 1) do livro como mercadoria; 2) da literatura como arte que constitui e ao mesmo tempo resiste à forma mercadoria. Mas isso era apenas uma preparação para a grande leitura que viria:
A paixão segundo GH.


Feita a leitura nos Núcleos de Base, gastamos um dia inteiro na discussão desse romance. Posso dizer que o primeiro contato da turma com Clarice foi bastante proveitoso. A todo momento alguém lembrava do conceito de "literatura de dois gumes", também do mestre Candido, que havíamos trabalhado no módulo anterior. Foi interessante abordar a narrativa clariceana também na perspectiva do processo social brasileiro. Foi muito bom polemizar sobre o conceito de narrativa intimista. Após a leitura, uma boa produção de texto.

Depois foi a hora de enfrentar
Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Detivemo-nos especialmente no trecho em que Riobaldo relata o encontro dos jagunços com os catrumanos. Foi o ponto de partida para discutirmos a literatura também como representação do processo de modernização do capitalismo à brasileira.

O texto de apoio para a leitura de Grande sertão: veredas foi "O mundo misturado", de Davi Arrigucci Jr. E foi muito interessante perceber o sertão como o mundo e o mundo como o sertão: as relações e os interesses dos grupos sociais ali representados, a complexidade do processo de formação do estado brasileiro, tendo por base a violência, e o compromisso da literatura com a representação desse processo. Mas o melhor da semana ainda estava por vir: a leitura do conto "Meu tio, o iauaretê", também do Rosa. Para essa, contamos com o texto de apoio "As artes da meaça", de Hermenegildo Bastos.

A leitura desse conto foi muito instigante para a turma. O texto foi lido em voz alta, para aproveitar ao máximo a proximidade da linguagem com a oralidade. Discutimos o significado de esse conto ter sido escrito em um momento em que os movimentos campesinos começavam a se organizar no Brasil. Debatemos o fato de o personagem Tonho Tigreiro ser o último de seu povo e de, junto com ele, morrer também sua língua e sua cultura. Merece notar aqui a empatia que se estabeleceu entre os leitores e o personagem: à medida que a leitura avançava, havia gente torcendo para que ele não morresse...

No último dia, nossa aula foi - paulofreireanamente - à sombra dos cajueiros em flor. Não na UFPI, mas no local onde os alunos estavam hospedados. E a pergunta que lhes ficou, para novas leituras, foi: "Qual é a relação entre a literatura e a sociedade, hoje?"

Tenho de registrar a alegria que foi a noite cultural da quarta-feira. Nas apresentações, os alunos já evidenciaram aproveitamento das leituras dos dias anteriores. Muita música, poesia, uma mística maravilhosa, feita por essa turma que tem muitos artistas:


Mas impagável mesmo foi o momento em que a turma viu a imagem e ouviu a voz do prof. Hermenegildo via internet. Depois de ler seus textos, depois de me ouvirem mencioná-lo "n" vezes durante os cursos, todos querem conhecê-lo. Pois é, acho que ele vai acabar enfrentando o calor de Teresina, muito em breve.

Vale a pena, sempre, ir a Teresina pela Turma Augusto Boal. Eu volto a Brasília me sentindo mais humana, com a certeza de que construímos um conhecimento valioso da literatura e do Brasil. E de que, com nossa prática, estamos formando mais do que professores, simplesmente: estamos formando intelectuais orgânicos, militantes e comprometidos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O dia em que São Paulo parou V (e último!)

Fabiana se espreguiça. Vira a cabeça para o relógio de cabeceira e, de repente, dá um pulo!

- Dez horas! Não pode ser! Como dormi até tão tarde?!

Todo dia, conta com o barulho do prédio em construção, ao lado do seu, para acordar. A peãozada começa às sete horas, infalivelmente. O canteiro de obras é o seu despertador de todas as manhãs, mas hoje, inexplicavelmente, não faz barulho. Por isso perdeu o primeiro horário na faculdade. Todos já saíram: seu pai, sua mãe e seu irmão. Nem a empregada está.

Apronta-se correndo, come uma fruta e se manda, no carro popular que ganhou de presente do pai por ter passado no vestibular para o curso de Direito. Hoje é dia de reunião do grupo de estudos. Seis meninos e meninas, primeiranistas, vão finalizar um manifesto a ser publicado na internet. O segundo, aliás. O primeiro teve boa repercussão, angariou 600 adesões. Trata da necessidade de preservar São Paulo para os paulistas. É a luta em que Fabiana está engajada e à qual dedica boa parte de seu tempo na faculdade.

No caminho para a faculdade, Fabiana nota que o prédio em construção está vazio, mas as ruas tem mais carros. Há menos ônibus circulando. Precisa parar para abastecer o carro, mas não há ninguém trabalhando no posto de gasolina perto de sua casa. Decide seguir até outro. No trajeto costumeiro, nota também a ausência dos velhinhos japoneses que costumam ocupar a praça pela manhã.

No segundo posto de gasolina, há somente um frentista para atender às quatro bombas. Não dá para esperar que a fila de carros ande. Fabiana segue em frente, com o ponteirinho do marcador de gasolina indicando o tanque na reserva.

- Paciência, dá pra chegar na faculdade. Abasteço depois.

Enfia o fone no ouvido e segue, ouvindo suas músicas favoritas no i-pod. No caminho, nota que o trânsito está mais fluido, que há pouca gente na rua, que quase não há ônibus circulando, que as barraquinhas dos ambulantes estão vazias.

- Ah, que beleza! É assim que esta cidade deveria ser todos os dias!

Na faculdade, percebe um dia atípico: há pouquíssimos estudantes circulando, embora seja horário de intervalo. Nem acredita que chegou em vinte minutos! Mas onde está todo mundo? Olha em volta e acha tudo muito quieto. Segue para a sala da reunião do grupo de estudos, percebe corredores mais vazios e até mesmo algumas salas de aula.

Na sala de reuniões, estão apenas o Lincoln e a Mércia, fazendo a revisão da minuta do manifesto.

- Bom dia, gente, desculpa o atraso. Perdi a hora hoje. Ué, cadê os outros?

- O Décio ligou - diz Mércia - avisando que não pode vir. Parece que o bisavô dele, que é bem velhinho, sumiu. A família toda está procurando por ele.

- Ah, o velho deve ser gagá e não consegue voltar pra casa. Aposto que vai aparecer logo. Se bem que não é aconselhável se perder em São Paulo... E os outros? Ninguém mais ligou?

- Não... Nem a Sandra, nem o Rodolfo, nem a Fernanda. Ninguém deu notícia.

Lincoln inicia uma conversa esclarecedora para Fabiana:

- Vocês viram como as ruas estão? Ouvi no rádio, enquanto vinha para cá, que sumiu muita gente... A cidade só não parou porque todo mundo tirou os carros da garagem. Eu mesmo não respeitei o rodízio, depois de ficar quase uma hora esperando o ônibus voltei pra casa e peguei o carro.

- Ih, lá no meu bairro tá a maior confusão! - completa Mércia - A padaria não abriu hoje, os porteiros dos prédios sumiram, não tem policiamento...

- Ué, até aqui, na facu, tá faltando muita gente. Vocês viram? Tem sala de aula vazia, vários professores e muitos alunos não apareceram. Os funcionários da limpeza também sumiram, até a moça da cantina...

- Nossa! - Fabiana se espanta - O que será que está acontecendo? Vou sintonizar uma rádio de notícias, pra gente saber melhor.

O noticiário das 11 dá uma idéia do caos instalado na cidade. Tudo continua funcionando, mas muito precariamente. Hospitais, escolas, empresas, indústrias. O prejuízo vai ser enorme, diz o apresentador do jornal, porque atividades que não podem parar estão ameaçadas.

- Uau! Mas por que sumiu tanta gente? Como? Pra onde foram?

Neste momento, passa pela mente de Fabiana um pensamento que ela logo repele. "Não pode ser." Na noite anterior, antes de dormir, fizera uma releitura do primeiro manifesto. Estava muito brando, muito enquadrado no politicamente correto. O grupo havia tratado todos os migrantes pela régua da igualdade. Na verdade, era mais para não chocar, para não parecerem preconceituosos. Defenderam a exclusão de todos os migrantes, sem importar a origem. Mas depois das 600 adesões, Fabiana se sentia mais encorajada a assumir que o alvo eram apenas os nordestinos. Era contra a permanência deles na cidade que a garota queria dirigir o manifesto. Ao apagar a luz, pensou: "Amanhã vou propor que o segundo manifesto seja específico para os imigrantes nordestinos. Eles é que atrapalham o progresso de São Paulo, não os outros..."

O mesmo pensamento teima em voltar à mente de Fabiana. "Será possível?..." Na noite anterior, feliz com a repercussão do primeiro manifesto, dormira tão feliz! Desejara com todas as suas forças que a grandiosa metrópole se livrasse dos migrantes que impediam seu progresso. Dormira pensando nisso, desejando, desejando, desejando!

- Ah! Mas não era pra sumir todos! Só os nordestinos! - exclama quase sem querer.

Lincoln e Mércia levam um susto. Estão preocupados, na revisão do segundo manifesto, em não deixar transparecer um ataque específico a esta ou aquela origem dos migrantes. Agora, a exclamação de Fabiana lhes deixa claro o preconceito, a real motivação do primeiro manifesto, que ela redigira sozinha, laboriosamente disfarçada pela seleção cuidadosa das palavras.

Entreolham-se. Intimamente decidem se querem continuar a publicar manifestos em defesa de "São Paulo para os paulistas", sob a liderança de Fabiana. Mércia lembra que, se seu bisavô italiano fosse vivo, também estaria sumido agora, como o bisavô de Décio. Aonde teria ido parar toda essa gente desaparecida? Lincoln deixa aflorar o incômodo que sentira desde o início do contato com Fabiana. Então era para isso que entrara no curso de Direito? Sem dizer nada, os dois entregam a minuta a Fabiana e saem da sala.

Fabiana fica ali, absorta com o noticiário do rádio no i-pod. A notícia agora, da editoria internacional, é o estranho aparecimento de milhares de velhinhos em várias cidades japonesas... Mas a menina de classe média, estudante de direito em uma faculdade tradicional, nem se toca. Está feliz porque alguma força mágica realizou seu grande desejo.



sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pausa para meditação


(Dizem que uma pausa valoriza qualquer narrativa. Eu penso que não é tanto a pausa em si, mas o silêncio do narrador quando os leitores estão ávidos pela continuidade.

Penso nos jornais do século XIX, que traziam os capítulos de folhetins escritos por José de Alencar, aguardados avidamente pelas leitoras - sim, a maioria era de leitoras! Assim é que foram publicados inicialmente livros como Cinco minutos, A viuvinha e O guarani. Joaquim Manuel de Macedo (A moreninha), Machado de Assis (Helena, por exemplo) e Manoel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias) foram escritores que iniciaram a publicação de suas obras nos jornais, capítulo a capítulo, brincando com a curiosidade dos leitores.

Daí se dizer que as novelas de televisão são hoje o nosso folhetim eletrônico. Guardadas as diferenças históricas e tecnológicas, o princípio é o mesmo dos folhetins de antanho. Mas que perderam em profundidade, ah! com certeza! São tão superficiais as telenovelas que basta a gente assistir aos capítulos da primeira e da última semanas para dominar toda a trama!

Mas o que eu faço aqui não é um folhetim eletrônico, penso. Trata-se apenas de um exercício de imaginação, motivado por uma manifestação explícita do preconceito dos jovens de uma turminha de classe média alta de São Paulo. Socializada na internet, essa manifestação conseguiu 600 adesões, o que é de assustar.

Na minha despretensiosa narrativa, estou lidando com a desorientação, a confusão e a insegurança resultantes de um acontecimento mágico: o desaparecimento dos migrantes de uma megalópole, de um dia para o outro. Como diria minha saudosa avó, eles "anoiteceram mas não amanheceram" na cidade.

Além disso, estou lidando também com o cotidiano: reforma, mudança, organização de minha biblioteca, doação de livros para movimentos sociais, leituras, viagens, tentativas de escrever, convivência com minha família, carinho para as netas...

Ufa!!! A vida é cheia de afazeres, não? Por isso, apelo a meus 28 leitores para que não percam a paciência. A vida, ops! a história não parou, ela vai ter um desfecho.)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou IV


- Não entendo... Como vim parar aqui?

Selma olha a sua volta e reconhece imagens guardadas em algum canto da memória. Vinte anos depois de ir para São Paulo, vê-se agora inexplicavelmente transportada para sua cidadezinha no interior do Maranhão, de onde saiu aos dezesseis anos em busca de futuro melhor.

Amanhece. Ela nota que está de chinelos e com a camisola que vestiu ao se deitar ontem. Não se lembra de mais nada, apenas de ter se deitado para dormir.

Olha em frente e lá está a rua em que morava quando criança. Não há mais a sua casa, mas no lugar dela um predinho com loja de duas portas no térreo, uma varandinha logo acima da marquise e duas janelas com cortinas claras.

- Quem será que mora aqui agora?

Faz um gesto para alcançar a campainha, mas se detém. Pensa que é muito cedo, deve ter gente ainda dormindo lá dentro. Espera.

Na outra calçada da rua sem movimento, alguém abre um portão pintado de vermelho. Uma mulher sai e fica olhando para Selma.

- Marinalva? Graças a Deus! Lembra de mim?

- Selma?! Vixe, é você mesmo? Não acredito! Mas que faz aqui, assim, de camisola? Corre, dê cá um abraço!

Amigas de infância sofrida e adolescência idem, as duas se encontram no meio da rua vazia. Um abraço demorado traz de volta antigos afetos, reconhecem-se como se o tempo não tivesse passado.

- Vem cá pra dentro, acabei de passar o café, já ia comprar o pão. Vem, amiga, a casa é sua. Eles ainda estão dormindo, meu marido e meus filhos, mas daqui a pouco acordam.

Na casa modesta Selma conta a Marinalva o que não sabe. Não sabe como veio parar ali, não se lembra do que aconteceu.

- Sabe? Agora há pouco no rádio deu uma notícia de coisas estranhas acontecendo em São Paulo. Gente que desapareceu, muita gente mesmo. Diz que a cidade está na maior confusão.

- Ah, Marinalva, então eu sou uma das pessoas que desapareceram. Não tem outra explicação.

- Toma, amiga, veste esta roupa minha, vamos até a padaria. Quem sabe a gente fica sabendo de mais alguma coisa lá?

Selma está perplexa. Quer saber onde estão as outras pessoas de sua família, que ficaram para trás quando ela fugiu para São Paulo. Pai, mãe, irmã e irmãos.

- Toda a sua família foi pra São Luís, pouco tempo depois que você sumiu. Acho que seu pai tinha esperança de encontrar você lá...

Saem rumo à padaria. No caminho, encontram outras pessoas vagando pelas ruas, desnorteadas.

- Vixe! Não foi só você que voltou, Selma! Olha ali o Nonatinho, lembra dele? Estava em São Paulo também. Aqueles outros eu não conheço, mas aquela senhora mais velha parece a mãe da Deusina, lembra? Ela largou a família e sumiu, já faz uns dez anos!

- Jesus! Que confusão é essa, amiga? O que que nós estamos fazendo aqui? Será que um poder maior despachou todos os nordestinos de São Paulo de volta pro Nordeste?

- Sei não, amiga! Vamos ver se na padaria as pessoas estão comentando alguma coisa...

O cheirinho do pão fresco no ar lembra aquele das manhãs paulistanas, quando Selma vai cedinho comprar o pãozinho para o café da manhã da família.

Na padaria, seu Manoel está em uma manhã agitada. Muita gente estranha aparece para pedir informação. Homens e mulheres querem saber o nome da cidade, dizem não saber o que fazem ali. Em meio aos aromas de pão e café, ele repete a notícia que ouviu no rádio:

- Sumiu muita gente de São Paulo. Se a senhora mora lá, então vai ver que é por isso que está aqui.

- Sumiu como, Seu Manoel? Aqui, encontrei a Selma, que saiu daqui há vinte anos... Ela foi pra São Paulo e apareceu lá na rua em que a gente morava!

- Eu eu sei, Marinalva? Só sei que esse povo todo apareceu na cidade de manhãzinha, todo mundo meio tonto, desnorteado. O que eu posso fazer é repetir a notícia que deu no rádio hoje cedo. Diz que São Paulo amanheceu bem vazia...

- Será que os nordestinos todos resolveram voltar? Mas a Selma nem sabe como veio parar aqui...

- Disse no rádio que não foram só os nordestinos, não. Todo mundo que não era de lá sumiu.

- Meu Deus! Ai, Marinalva, que que eu faço? Eu tenho uma vida lá em São Paulo!

- Então, amiga! Vamos lá em casa ligar a televisão e ver se tem mais alguma notícia. Já está na hora de começarem os jornais. Mas me conta, como é sua vida lá?

Selma quase começa a contar sua história em São Paulo, mas alguma coisa a faz se calar. Pensa que Marinalva está lá, no mesmo lugar, com sua casa, seu marido e seus filhos. E ela? Durante todo esse tempo, ficou trabalhando de casa em casa, até parar mais tempo com uma família. De seu, tem apenas o que cabe no quarto de empregada. Ah, para que contar isso a alguém?

Sua cidade natal está bem maior agora, tem asfalto, energia elétrica, comércio. Dói pensar que talvez devesse ter ficado. Fugiu em busca de futuro, vive em São Paulo uma vida apagada, sempre trabalhando e morando nas casas de outros. E se tivesse ficado? Será que teria uma vida igual à de Marinalva?...

Pela TV, as amigas veem: São Paulo está parada, vazia, caótica. Como uma cidade amanhece assim, sem metade de sua população, da noite para o dia?

(continua...)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou III

Ela tenta chegar a casa com as crianças. Mas o trânsito está confuso. Há carros abandonados nas ruas, com as portas abertas. Qualquer obstáculo torna muito lenta a ida para seu condomínio nos Jardins.

Embora a cidade esteja estranhamente vazia de gente nas ruas, está também estranhamente desorganizada, com lojas fechadas, semáforos desligados, aparência de abandono. Era para o trânsito ser mais ágil, mas ocorre o contrário.

Liga o rádio e tem de apertar várias vezes o botão, até conseguir sintonizar uma emissora. Apenas música. Nada de noticiário. Continua dirigindo. No banco de trás, uma das meninas pergunta:

- Mãe, por que está tudo diferente hoje? Não tem ônibus e táxi, só uns poucos...

- Não sei, filha, só sei que temos de chegar em casa rápido e ficar lá, esperando tudo voltar ao normal. Quem sabe a Selma já chegou?

Já é quase meio-dia, quando começa a descer a rua onde fica seu prédio. Olha para um e outro lado e percebe que o lugar, sempre movimentado, tem as lojinhas fechadas e pouca gente a pé. Mas vê que a padaria de seu Alonso está aberta. Dá uma paradinha, abre o vidro do carro e vê o dono lá dentro, com ar de desorientação.

- Ei, seu Alonso, tudo bem aí?

- Hem?... Ah, sim, tá tudo bem... acho... não sei. Os empregados não vieram, nem o padeiro que contratei em Minas apareceu, hoje não pude vender pão...

- Olha, seu Alonso, estão dizendo que está tendo ataque do PCC pela cidade. Acho melhor o senhor fechar a padaria e ir para casa...

Acelerou sem esperar resposta, porque uma buzina tocava atrás de seu carro.

Acionou o controle remoto para abrir o portão de entrada do condomínio e percebeu que o porteiro não estava. Chegava finalmente à segurança do prédio, dentro em pouco estaria em casa com as meninas. Era só esperar que o marido também chegasse.

Nada da Selma, nenhum telefonema, nenhuma explicação. Resolve olhar o quarto da empregada. Tudo está como se ela não tivesse saído: a cama desarrumada - "Engraçado, parece que ela se deitou ontem à noite e depois resolveu sair..." - as roupas no armário, os sapatos na pequena prateleira do canto, a bolsa sobre o criadinho, com tudo dentro: carteira, dinheiro, documentos. Começa a pensar que a Selma não saiu à noite, parece ter sido levada.

O marido chega depois de alguns minutos. Está com cara de incrédulo, tem um ar de perplexidade.

- Querida, você não imagina como está a cidade. Parece que não tem gente suficiente para garantir que tudo continue funcionando! Está um caos!

- Ah, sabe o que eu acho? Isso não é coisa do PCC, de jeito nenhum! Parece que milhões de pessoas simplesmente desapareceram. Sumiram! A Sofia está na internet, conversando com as amiguinhas e elas estão dizendo a mesma coisa: que sumiu muita gente.

- Pois é, lá no escritório, algumas pessoas não apareceram. A dona Socorro, a Yoko, o Eustáquio... Engraçado, são todos funcionários que tem famílias em outros estados! Mas será...?

Ele não quer acreditar no que acaba de pensar. Será que sumiram só os que não são de São Paulo?!

- Peraí! O porteiro do nosso prédio é do Ceará... A dona Socorro uma vez me disse que nasceu na Bahia... O Eustáquio veio de Minas há um ano... A Yoko foi contratada quando ainda morava em Curitiba, onde nasceu... Será que é isso?!

- Você quer dizer que sumiram todos os que não são de São Paulo? Ih, pode ser isso mesmo... O seu Alonso da padaria disse que o padeiro, que também é de Minas, não apareceu. Ai, meu Deus! A Selma é do Maranhão, vai ver foi por isso que desapareceu! Tudo dela está lá no quarto, do jeitinho que ela deixou ontem, quando foi dormir!

Correram os dois para a frente da TV, exatamente no momento em que o noticiário mostrava uma São Paulo como eles nunca tinham visto: milhares de carros abandonados nas ruas, semáforos desligados, linhas do metrô com trens parados.

- Muda o canal, vamos ver mais!

Hospitais com muitos leitos vazios e com falta de muitos funcionários; escolas, colégios e universidades sem funcionar por falta de muitos alunos, professores, funcionários... Prédios inteiros de apartamentos completamente vazios, casas abandonadas com as portas abertas...

- Que loucura! Jamais pensei que fosse ver São Paulo assim!

Nesta tarde, ficam em casa, com a TV fica ligada. Todos parecem perplexos e intrigados. Buscam explicações para o fenômeno do desaparecimento dos migrantes da cidade. Até alguns apresentadores de programas televisivos estão ausentes, as transmissões são precárias, porque faltam muitos funcionários também nos meios de comunicação.

Enquanto esperam, tentam imaginar a cidade tão enorme, tão cosmopolita, agora meio vazia, ou meio cheia, depende do ponto de vista: cheia de paulistanos da gema, vazia de todos os migrantes que a fazem funcionar. Quase instintivamente, o casal chega à janela do apartamento.


Pela primeira vez marido e mulher não sabem explicar por que, mas sentem no ar uma sombra de perigo e ameaça, indefinida...

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O mundo sem Betta


Hoje o luto chegou com força ao meu coração. O mundo perdeu Betta e eu me vejo tristemente obrigada a viver neste planeta sem poder vê-la e falar com ela.

Betta era cheia de vida, gramsciana de formação, antropóloga querida pelos educadores indígenas.

Escrevo para me despedir, mal vejo meu texto, tenho a vista embaçada por lágrimas que não consigo segurar.

Adeus, querida Betta. Guardo aqui, para sempre, o texto que você usou para se apresentar a quem quisesse sua amizade, seu afeto, seu carinho incondicional. Jamais esquecerei o privilégio de ter sido sua amiga.


As vezes sou mansa outras viro o cão
Algumas vezes me penso louca

noutras acho que não

sou fria, calculista,
sentimental, enamorada...

fico triste tipo vazia

fico brocha, fico pilhada
sou tantas coisas, quase tudo
sou também um quase nada
sou cada cheiro e perfume que respiro

sou poeira e asfalto

lama e concreto

objecto directo

linha reta mal traçada
sou efêmera e eterna

sou triste e engraçada

sou antiga e moderna

amorosa e leviana

boa e malvada

discuto filosofia, falo besteira

sou profunda e superficial
sou italiana, sou brasileira

mas não gosto de carnaval
bebo cachaça, bebo cerveja

há quem me veja bebendo licor

é um horror mas sou consumista,
sou elitista e aristocrata

luto pelo planeta
leio poesia e faço versos
escrevo músicas azuis

já plantei árvore,
já corri de vaca
já corri de cobra e quase morri

já amei bastante

já chorei demais

já sorri, gargalhei e dei risada

essa latinidade aflorada

esse ranço judaico-cristão

sou lógica e contraditória

mas tudo é estoria inventada

domingo, 8 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou II

Ela está aturdida e apavorada. Não sabe por que está neste lugar. Lembra-se claramente de ter ido dormir e agora... isso? Anda por uma rua de cidade pequena, o dia amanhece. As casas ainda não abriram as janelas, o sol demora um pouco para surgir por inteiro atrás da pequena serra que protege as casinhas coloridas.


Vê outras pessoas vagando como ela, perplexas e confusas. Mas não se lembra de nada, pensa que sonha, belisca-se, tenta acordar. Nada. Socorro não sabe o que aconteceu. Não conhece aquele lugar, não se lembra de nada, não tem sequer um vago dejà vu.

- Deus do céu, o que me aconteceu? Como vim parar aqui?

Olha-se e percebe que está de camisola. Vê a sua volta um rapaz de pijama e outra mulher de camisola. Todos tem o olhar assustado, devem estar pensando o mesmo que Socorro:

- Que lugar é este? O que estou fazendo aqui? Cadê minha kit, minha rua, meu ônibus de todo dia?

Pensa que alguém está brincando com ela, está tendo algum tipo de ilusão ou de pesadelo do qual não consegue acordar. E precisa acordar logo, porque tem de ir para o escritório, não pode se dar o luxo de faltar ao trabalho na avenida brigadeiro, tem de estar lá para passar o dia, como todos os outros, atendendo ao telefone, transferindo ligações. Será que ficou maluca, será que o Eustáquio tem razão quando diz que telefone é máquina de fazer doido?

- Ai, Deus, amaluquei?

O rapaz de pijama chega perto dela e pergunta que cidade é esta e ela, já desesperada, diz que não sabe. E ele:

- Nem eu. Mas o que estamos fazendo aqui?

- E eu sei lá, moço? Eu estava na minha casa ontem e hoje acordei aqui.

- Ora, eu também, senhora. Me diz: onde mora? Como se chama?

- Meu nome é Socorro, moro em São Paulo... No Sacomã... E você?

- Ah, eu sou o Evaldo. Também moro em São Paulo, mas no Cambuci. Não sei como vim parar aqui. A senhora nasceu em São Paulo mesmo?

- Não, eu nasci na Bahia, mas meus pais se mudaram quando eu tinha três meses. É, praticamente, nasci em São Paulo, né? Eu, pelo menos, me considero paulistana, até no sotaque. Meus pais já morreram, não tive irmãos. Moro sozinha. E você?

- Eu também me considero paulistano. Sou filho adotivo, sabe? Minha família é de Pinheiros, meus pais me pegaram para criar com 30 dias de nascido. Tenho dois irmãos, mas eles não foram adotados, só eu.

- E que que você acha que aconteceu com a gente? Por que será que estamos aqui, neste lugar tão estranho?...

- Sei lá, dona, estou é com medo. Será que agora que fiz 18 anos o pai e a mãe se arrependeram de me adotar? Será que resolveram me devolver e ficaram com vergonha de me contar? Ah, não sei o que pensar, não sei como vim parar aqui, de pijama...

- E eu, moço, que ainda tenho de trabalhar, não posso chegar atrasada e não consigo acabar com isso... Já estou ficando desesperada!

- Calma! Vamos fazer o seguinte: bater na porta de uma das casas e pedir informação, saber que cidade é esta... De repente a gente consegue saber o que está acontecendo, né?

E lá se vai o estranho casal rumo às casas coloridas, tentar solucionar o mistério deste dia tão estranho. Quando Socorro e Evaldo começam a andar, são seguidos pelos outros que vagam pela rua, silenciosamente...

(continua...)

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou

(O texto a seguir é ficcional. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais não é mera coincidência, visto que a arte imita a vida e vice-versa.)

Acordou estranhando o silêncio naquela quarta-feira. Não ouviu o costumeiro barulho na cozinha, não sentiu o cheirinho do café fresco, sentiu falta de alguém cantarolando baixinho.

- Selma?... Selma!... Ué, cadê a Selma, gente? Cadê o café da manhã?

Logo veio o marido e ela estava atrapalhada na cozinha, tentando preparar o café da manhã, antes que as crianças saíssem do quarto.

- Cadê a Selma?

- Não sei, não está aqui.

- Será que ela não dormiu em casa? Mas ela nos deu "boa noite" ontem, dizendo que ia dormir...

- Pois é, não dormiu aqui. E sabe-se lá a que horas vai chegar...

Chegam as crianças, duas garotas de 10 e 12 anos, já com roupa de escola. Olham em volta e veem que é um daqueles raros dias em que a Selma não está em casa. Veem a mãe tirando queijo, leite e suco da geladeira. Pão, só o de ontem, porque a Selma é que devia ter comprado cedinho... Café tem de ser o solúvel mesmo, a água já estava fervendo no microondas.

- Engraçado, a televisão não está passando o jornal matinal - diz o pai.

- Hoje está um dia muito esquisito, querido... fala a mãe. - Estou achando o ar mais silencioso, não ouço o barulho dos ônibus e já são quase 8 horas... Será greve dos rodoviários?

- Terminaram, meninas? Então vamos, já estamos atrasadas - diz a mãe. Tchau, querido, bom dia! Depois de deixar as meninas na escola, vou fazer as compras do mês. Quando eu voltar a Selma já estará aqui, para guardar tudo e fazer o almoço.

- Tchau, querida, vejo você à noite. Ah, quem me dera poder vir almoçar com vocês... Impossível, com o trânsito de São Paulo! - falou isso com orgulho de ser paulistano.


Mal andou dois quarteirões e ele já está irritado com o trânsito, mais lento do que o normal. Não vê aquela quantidade enorme de ônibus que sempre o atrapalham, apenas três ou quatro. Mas está vendo muito mais carros na rua.

- "Deve ser greve" - pensa. "Saco! Todo dia tem alguma coisa para atrapalhar."

Atrasado, coloca o carro no estacionamento pago, a meio quarteirão do escritório. No caminho, percebe que a banca de revistas está fechada. Estranha. Sempre compra o jornal antes de entrar no centro empresarial e bate um papo rápido com seu Nonato, o dono da banca, que conhece há mais de 10 anos.

Ele sempre dá uma passadinha rápida no café do térreo do centro empresarial, compra um para viagem e sobe pelo elevador. Mas hoje só há três garçonetes, em vez das oito habituais. Fila no caixa. Desiste do café, corre para pegar o elevador. Ao descer no andar do escritório, percebe que está mais vazio. Vários colegas de trabalho ainda não chegaram: o Eustáquio, a Yoko, o Gilvan, a Socorro, o Raoni...

- É, deve ser greve mesmo. De rodoviários, metroviários, sei lá...

Mal se senta e seu celular começa a tocar. É a esposa:

- Querido, não sei o que fazer. A escola está sem um terço dos professores. A diretora não sabe o que aconteceu, ninguém avisou nada. A Clarinha tem professor para três horários e a Sofia para dois. Que que eu faço?

- Será que os professores estão em greve?! Mas não, é escola privada, não tem greve, né?

- Não, parece que eles simplesmente faltaram, não chegaram para trabalhar.

- Ah, então, leva as meninas para casa. Melhor, leva elas para as compras com você, depois vão todas para casa. Amanhã a coisa deve se normalizar.

De novo a irritação, porque o telefone do escritório toca sem parar. Droga! Despede-se rapidinho da mulher e atende, porque a Socorro não está. É a Flavinha, estagiária:

- Doutor, tô ligando pra avisar que hoje não vai dar pra chegar aí, aqui em Itaquera tá a maior confusão, trânsito parado, lojas fechadas, canteiros de obras vazios. Ninguém sabe o que está acontecendo.

- Ah, Flavinha, deve ser alguma greve...

- Não é, não, doutor. É alguma coisa estranha, estão faltando pessoas nas ruas, nas casas, nas lojas, nos prédios em construção... Tudo muito esquisito, parece que sumiu todo mundo... Os nossos vizinhos da frente saíram e deixaram a casa aberta.

- Tá bem, Flavinha, não esquenta. Se não der pra chegar aqui, fique em casa. Tchau!

Esquisito. Ele percebe que está mesmo é faltando gente na cidade. São Paulo sempre tem tanta gente nas ruas. Mas agora, olhando pela janela do escritório, ele vê bem menos gente transitando. No prédio em que trabalha, o movimento dos corredores está reduzido.

Liga de novo a mulher:

- Querido, tá a maior confusão no supermercado. Faltam vários funcionários, não tem reposição de produtos, não tem açougueiro, nem padeiro, pouquíssimos caixas. Não sei como vou fazer as compras...

- É, querida, tem alguma coisa errada. Tá faltando gente em vários lugares da cidade.

- Olha, aqui tem uma televisão ligada e vai ter edição extra do jornal. Vou desligar e te ligo de novo, pode ser alguma notícia para a gente saber o que está acontecendo.

Enquanto espera, ele liga o computador e busca notícias nos portais dos principais jornais. Nada, apenas uma notícia de que o maior hospital da cidade está funcionando de forma precária, porque muitos profissionais não compareceram ao trabalho.

Volta a tocar o celular. E a mulher:

- Ai, querido, a notícia que deu na televisão é de que São Paulo amanheceu com menos de 50% da população. Será possível? Para onde foi todo mundo? Ah, liguei lá em casa e a Selma ainda não apareceu...

- Pois é, alguma coisa aconteceu e as notícias são insuficientes. Eu jurava que era alguma greve, mas agora começo a pensar que é outro ataque do PCC, sei lá...

- Ai, querido, vou pra casa agora mesmo com as crianças. Dá um jeito de ir você também, tá? Não demora, está me dando um medo...

- Calma, bem! Vai com calma, não se preocupe com as compras. Eu também vou, encontro vocês em casa.
(Continua...)

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Apenas um sonho?

Sonhei que acordava no dia 4 de outubro e, como todas as manhãs, me sentava em frente ao computador para ler as notícias. Queria saber o resultado das eleições.

Estava feliz pelo fato de o Brasil ter, pela primeira vez, uma mulher na presidência. Garantia de continuidade das políticas implementadas em dois mandatos daquele que, nos últimos quatro meses antes da eleição de 3 de outubro, fora simplesmente "desaparecido" do jornal noturno da grande rede de tv.

Mas o apagamento da imagem e dos discursos do antecessor não foi suficiente para apagá-lo da memória dos cidadãos, porque eu estava acordando em uma manhã feliz do primeiro dia do início de uma nova história.

No DF continuava a disputa. Ia ter segundo turno para que a população escolhesse entre o gangster e o médico. Mas uma coisa de bom aconteceu: todos os envolvidos nos escândalos que derrubaram o governador anterior foram varridos do mapa político da cidade. E o ex-governador que tinha nome de uma plantinha malcheirosa também havia sumido...

Fui olhar o mapa. Primeiro, no Maranhão, tive a alegria de ver que nenhum membro de uma antiga oligarquia local foi eleito. No Amapá, onde há um braço dessa oligarquia mofada, também não. São Luís estava em festa, muitas bandeiras vermelhas compunham a multidão nas ruas.


Pulei dali para o Piauí. Bom demais ver que um certo senhor bochechudo, defensor incansável de certo banqueiro dos olhos azuis, estava sem mandato. Será que os piauienses perceberam que o tal usava o mandato que lhe fora concedido pelo povo para defender interesses antipovo?
De mesma forma, um certo senador do mesmo estado, que se notabilizou por discursos nada santos de crítica ao presidente "apagado" pela mídia, também fora varrido sem dó nem piedade.

No Amazonas, bati palmas de satisfação com a varrição de um truculento boxeador que representava os amazonenses no senado. O carinha ainda tentou pular do barco que naufragava, como rato, mas não logrou enganar o povo ao tentar colar sua imagem na do governante que ofendera profundamente quando na oposição.

Em Pernambuco, foi um banho. Estavam definitivamente fora do baralho as cartas marcadas de políticos tradicionais: um muito alto e magro, caladinho, que foi vice no tempo em que o Brasil foi vendido para os estrangeiros; outro, ex-comunista direitoso que apoiou o golpe militar em Honduras.

Nas Alagoas do grande Graça, o povo soube dizer não a um colorido e violento candidato que ficou famoso por apregoar aos quatro ventos a cor de seus testículos, antes de ser expulso da presidência do país. Também foi escafedido um certo ex-governador que sucateou vergonhosamente a educação e se valia da memória do pai para angariar votos.

Eita, que esse sonho está bom demais! Voei para São Paulo e - oh surpresa! Os paulistas deram uma banana ao picolé de chuchu, contra todas as pesquisas!!! Inacreditável! Foi a remissão desse povo que passou 16 anos sob o jugo da direita mais empedernida. De quebra, espirraram vários políticos profissionais, daqueles que compõem a tradição de roubalheira e da corrupção no país. Admirável o povo de São Paulo, nossa!

Corri ao Paraná e o que vi causou-me alegre espanto: o quase-vice campeão-do-botox-com-implante-de-cabelos ficou de fora! Incrível!

Mas o que andou acontecendo no Brasil? Ah, tenho que correr os olhos pelas notícias de todos os estados!... Por um instante imaginei o país com novas figuras na política, com a velharia recolhida, tentando conspirar nos clubes militares, nas academias de letras, nos iates-clubes, no lions e no rotary, nas lojas maçônicas, nas associações de aposentados, nos clubes de crochê e tricô e nos bailes da terceira idade, sem sucesso.

Nesse momento, a risada que larguei no ar foi tão alta, que me acordou. Não pude terminar a viagem pelas notícias do país. Olhei em volta, decepcionada. Noite fechada, silêncio pesado. Amanhã me levantarei para lidar, mais uma vez, com toda a manipulação da mídia em favor de seus candidatos e, invariavelmente, contra o Brasil.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Enquanto isso, no Maranhão...

A propósito de tudo o que escrevi no post anterior, não posso deixar de divulgar aqui uma notícia que nos deixa mais que perplexos - deixa-nos estarrecidos. Como a velha mídia não cumpre seu papel de noticiar e tem deixado essa tarefa para as mídias independentes na internet, os blogueiros tem se transformado em alvos de forte repressão, com o auxílio da pesada mão da "justiça". Vejam o que ocorre no Maranhão, sob a batuta da velha oligarquia Sarney:

Juiz censura jornalista no Maranhão, numa decisão proferida em dois minutos

O juiz Alexandre Lopes de Abreu, diretor do Fórum Sarney Costa em São Luís e respondendo pela 6ª Vara Cível, decidiu censurar o blog do jornalista Itevaldo Júnior, atendendo um pedido de liminar do juiz Nemias Nunes Carvalho, da 2ª Vara Cível da capital. A decisão de Alexandre Abreu determina que o jornalista retire imediatamente do blog www.itevaldo.com uma reportagem onde ele revela que o juiz Nemias Carvalho comprou uma fazenda de 101,19 hectares, de um acusado que o próprio magistrado revogara a prisão. A ré estava foragida quando da revogação da prisão, mas, em seguida, negociou a propriedade por R$ 5.ooo,00 às margens da BR-316. A decisão liminar foi proferida na última sexta-feira, dia 16. O juiz Alexandre Abreu decidiu em dois minutos, o deferimento, como comprova a movimentação processual disponível no site do Tribunal de Justiça do Maranhão:

“Às 14:00:48 – CONCLUSOS PARA DESPACHO / DECISÃO. sem informação.
Às 14:02:39 – CONCEDIDA A MEDIDA LIMINAR”.

Na decisão, o juiz da 6ª Vara Cível ordena que o jornalista retire imediatamente do blog a matéria “JUIZ NEMIAS CARVALHO: NOUTRA POLÊMICA”, publicada no último dia 12. O juiz determinou ainda que o blog “se abstenha de proceder a qualquer alusão ou referência ao nome do autor, até decisão final da causa”. Além de estipular uma multa diária de R$ 500,00, caso seja descumprida a decisão liminar. O jornalista cumpriu a determinação judicial, hoje, logo após ser notificado às 7h05 da manhã em sua residência. Ainda em sua decisão, o juiz afirma que “a dignidade da pessoa” é um “bem maior” que a “liberdade de manifestação”. Itevaldo Júnior afirmou que recorrerá da rápida decisão. “A celeridade dessa decisão é de fazer inveja ao velocista jamaicano Usaih Bolt”, ironizou o jornalista.


(Retirado do blog Brasília, eu vi - de Leandro Fortes)

Não é novidade, sabem? Luís Nassif, Paulo Henrique Amorim e outros blogueiros respondem a numerosos processos judiciais, de autoria - pasmem! - de órgãos de imprensa como a Veja e a Falha de São Paulo. Parece que querem aniquilar a concorrência, sem melhorar a qualidade da imprensa que praticam, simplesmente calando quem faz a crítica que todo leitor gostaria de encontrar nas revistas e jornalões. É ou não censura?

terça-feira, 20 de julho de 2010

O fim da velha mídia

Quando passo muito tempo sem escrever geralmente há duas razões: perplexidade ou tristeza. Mas pode ser que as duas ocorram simultaneamente, no meio do turbilhão que é o cotidiano com suas 684 tarefas.

Ando triste porque uma grande amiga está doente. Penso nela diariamente, várias vezes ao dia. Isso me dispersa, me dá vontade de fugir do dia-a-dia, ficar num canto, quieta, esperando notícias que melhorem a cor do mundo...

Mas também tenho andado perplexa. Prometi alguns posts atrás que escreveria sobre o fim da velha mídia no Brasil. Acho que chegou a hora, tendo em vista a notícia de que o Jornal do Brasil suspendeu sua tiragem impressa, passando a existir apenas na web. Veja aqui como a Falha de São Paulo divulgou a matéria. Pobres cariocas! Agora eles tem apenas O Globo... (não que o JB fosse um excelente jornal, bem entendido)

Isso pode ser um sintoma e um sinal. Algum tempo atrás analisei os órgãos de imprensa brasileiros como uma associação mafiosa-partidária. E o que tenho lido e ouvido confirma essa impressão. No momento em que se inicia no país mais uma campanha eleitoral, nossa imprensa vela verdades e desvela-se para o leitor/espectador como pura tentativa de manipulação.

Penso que seria mais honesto se todos os jornais, revistas, emissoras de rádio e canais de televisão explicitassem para o leitor/espectador sua preferência por este ou aquele candidato, embasando seus argumentos em uma análise criteriosa do perfil do escolhido. Mas uma análise séria, não a repetição de clichês e de preconceitos.

Que eu saiba, apenas uma revista semanal teve a coragem de fazer isso. E foi logo acusada de querer se beneficiar em um eventual governo do partido que diz apoiar. Mas confesso que me sinto mais confortável lendo essa revista, que assume claramente uma posição, do que outras que, sob o manto de uma fictícia imparcialidade, enganam seus leitores.

Aprendi por aí que a imparcialidade no jornalismo é um mito. Não se trata propriamente de uma novidade, para quem viveu a história recente do Brasil - e olhem que não sou tão velha assim! Mas me lembro perfeitamente da primeira eleição direta para presidente depois da ditadura empresarial-militar que nos sufocou por longos anos. Lembro-me claramente como a imprensa, capitaneada pelas Organizações Globo, construiu e vendeu como sabonete a imagem de um caçador de marajás, vindo das plagas alagoanas. E de como um debate entre os dois candidatos a presidente, no segundo turno, foi editado para ir ao ar no JN na véspera da eleição, favorecendo aquele que, depois de empossado e de ter apregoado que tinha "aquilo roxo", protagonizaria o primeiro caso de impeachment da história republicana brasileira. O diabo é que me lembro disso cristalinamente! E de vez em quando revejo essa história, como aqui (esse documentário está dividido em 10 partes, todas muito interessantes):



É duro ter memória, sabem? Talvez fosse mais cômodo a gente esquecer o que ficou para trás, seguir vivendo feliz, com a mente entorpecida pelas telenovelas, pelos sonhos de consumo, pelas reportagens que escurecem com a nódoa do ódio de classe a realidade. Talvez fosse mais fácil alienar-se, dar uma guinada para o conservadorismo que ignora a pobreza, adota o discurso do mérito e da competência; talvez fosse mais doce olhar o abismo social que divide as classes no Brasil como resultado da falta de esforço, da secular preguiça dos brasileiros. E tachar os militantes do MST de baderneiros. Talvez fosse mais fácil ignorar que este é um povo trabalhador, que deseja apenas ter acesso a uma vida digna, com educação de qualidade, condições de moradia, de saúde, de mobilidade, de segurança alimentar. E que este é um país que reúne todas as condições físicas e materiais de proporcionar isso a seus cidadãos.

Um brasileiro "preguiçoso"

Analisando a mídia de hoje a gente entende por que o Brasil demorou tanto tempo a tomar o rumo das mudanças que provocaram transformações visíveis no cotidiano da maioria da população. Os mesmos jornais, revistas, estações de rádio e televisão estão aí, a repetirem o tipo de "jornalismo" que faziam há dez anos: comprometido com os poderosos, forjando notícias que não resistem a uma confrontação com a realidade, assassinando reputações daqueles que contrariam seus interesses, apoiando veladamente seus candidatos nas próximas eleições... Posso citar muitos exemplos, desde uma certa ficha policial falsa até "reportagens" alertando para uma eventual queda do valor das ações da Petrobrás.

O jornalismo de esgoto que hoje se pratica abundantemente no Brasil não se preocupa com as consequências: cria pânico para provocar corridas massivas a postos de vacinação; preconiza fracassos em todas as empreitadas que o governo tem pela frente, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016; defende escancaradamente interesses estrangeiros na discussão sobre a exploração do petróleo do pré-sal; debocha de programas sociais como o Bolsa Família e o Minha Casa, Minha Vida; é maledicente e difamador. Mantém "especialistas" de plantão para dar entrevistas que desqualificam as políticas públicas em curso no Brasil. Enfim, é um "jornalismo" que torce contra o Brasil.

Por isso penso que está próximo o fim da velha mídia, essa que hoje identificamos como sabotadora e golpista, afinada com os interesses udenistas que ainda impregnam a ideologia da elite brasileira, vendida e vendilhona (se é que existe essa palavra....), com o apoio inestimável de uma Justiça que privilegia a visão de mundo da classe dominante: o sagrado direito à propriedade privada, em detrimento do direito da maioria à justiça social.

Mas voltemos ao sintoma e ao sinal. O sintoma nos mostra que o jornalismo está em crise no Brasil, com o surgimento de novas mídias, notadamente as que utilizam a internet e se valem das redes sociais. O sinal nos dá a certeza de que os brasileiros, à medida que tem acesso a essas novas mídias, tendem a dispensar o conservadorismo caduco da velha mídia, abrindo mão primeiramente da leitura das versões impressas. Chegará o dia em que os canais de televisão públicos substituirão a também caduca programação das emissoras tradicionais.