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segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico II

As reminiscências da época da escola primária continuam.

Minha vida escolar na pequena cidade foi muito proveitosa. Na época eu não tinha ainda condições de formar a visão da escola como espaço de reprodução das práticas sociais. Mas isso ficou muito claro um pouco mais tarde, e foi a partir do que vivenciei. Educação laica? Nem pensar. Era a escola – pública – que nos preparava para a primeira comunhão, assim como era no espaço escolar que se realizavam algumas das festas da igreja. 

Um detalhe cômico: a professora que me preparou para a primeira comunhão nos passava muito medo com a possibilidade de a hóstia ficar grudada no céu-da-boca:

- Se a hóstia gruda no céu-da-boca, é sinal de que houve mentira na confissão ou não teve arrependimento sincero...
- E como é que se faz, professora? Se grudar...
- Ah, se enfiar o dedão para soltar a hóstia, é pecado! Só pode passar a língua e, se não soltar, tem de esperar até derreter.

Quem, depois disso, ia se deixar flagrar com o dedo na boca? Todo mundo ia fazer cara de anjo, com a hóstia grudada lá, fingindo que não tinha acontecido. 

 
Era o mês de maio e, um dia, eu disse a minha mãe que queria ser escolhida para coroar a nossa senhora, vestida de anjo. Eu tinha mais ou menos nove anos.

- Você, minha filha? Para mim, ninguém merece mais. Você é linda mesmo como um anjinho. Mas não vai ser escolhida...
- Por que, mãe? Eu quero tanto!
- Por que, antes de escolher a criança para fazer isso, a escola manda um bilhete pedindo autorização dos pais...
- Então?... A senhora deixa?
- É que junto com a autorização tenho de concordar em comprar a roupinha, as asas, a tiara, o véu...
- E?...
- Isso custa caro, benzinho...
- A senhora não tem dinheiro?
- Não...
- Mas eu posso vender pé-de-moleque, mãe!
- Pode, bem, mas mesmo assim o dinheiro não vai dar...

Hoje faço ideia de quanto essa conversa custava para minha mãe. Mas eu nem pensava no constrangimento dela, quando cheguei da escola, contando como havia sido a cerimônia de coroação, enquanto ela terminava de fazer o almoço.

- Ah, mãe, foi lindo demais! A santa ficava lá, bem no alto da escada toda enfeitada de flores! Flores de todas as cores. A diretora ficava bem ao lado da santa e, do outro lado, o padre. As crianças todas em fila no pátio, cantando aquelas músicas da missa - “Vestida de branco ela apareceu...”
 - Imagino...
 - E depois veio subindo a escada devagar, a Maria Augusta, vestida de anjo, com o cabelo pretinho e bem liso embaixo da tiara brilhante... até no véu tinha umas florzinhas... ela foi subindo, uma túnica de cetim branco brilhando, brilhando... foi subindo, carregando uma almofadinha vermelha, de veludo, e em cima dela a coroa, que parecia de prata, e brilhava, brilhava... Tudo brilhava muito, mãe!
 - Sei... Foi bonito, então?
- Ah, foi lindo, lindo demais!
- Pois então... quem sabe no ano que vem você vai coroar a santa...
- É, mãe, quem sabe...
 
 
E quando minha mãe se virava para o fogão, mexendo as panelas, eu a interrompia de novo:
 
- Mas, mãe, por que a Maria Augusta foi escolhida para coroar nossa senhora? Ela nem parece anjo!...
 
Minha mãe não respondia, mas eu via que, mexendo sem parar as panelas, ela suspirava.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico I


Os fatos que passo a narrar não são ficcionais. Os nomes é que foram trocados, para que ninguém se sinta molestado. Nada mais verdadeiro que o velho ditado: "recordar é viver".


Na cidade em que nasci fazer literatura dava muito prestígio social. Aquela merdinha de lugar tinha uma academia de letras e seus membros se reuniam uma vez por mês, num velho prédio que tinha um piso também velho de tábuas que rangiam. Lá, saboreavam quitutes e liam uns para os outros poemas, trechos de romances “em processo”, contos, trovinhas, essas coisas. Detalhe: não havia uma mulher no grupo e os caras vestiam ternos para ir às reuniões, que aconteciam na noite da última sexta-feira de cada mês.

A gente, criança, ficava na porta do prédio, na rua principal, vendo os vinte e cinco chegarem, às sete da noite. Chegavam a pé, vindo dos dois lados do quarteirão, às vezes em dois ou três. Depois que contávamos os últimos, íamos para a sessão do cinema, no prédio ao lado, assistir pela quinta ou sexta vez ao mesmo filme de faroeste. Era bom. A gente assoviava, batia os pés no assoalho de madeira acompanhando a música e torcia para a cavalaria acabar com os índios.

O cinema era quase de graça. Também o filme ficava em cartaz mais de um mês. A gente podia ir porque era baratinho. Todo mundo limpinho, cabelos penteados, sapatos engraxados. Assim era mais fácil passar pelo Xaveco, uma espécie de vigilante de menores, que não deixava entrar criança com idade menor que a indicada pela censura. Parêntese: Sim, era tempo de censura a filmes, livros e qualquer forma de arte considerada ameaçadora. Fecha parêntese. E lá dentro, no escuro, era a maior farra. Bolinhas de papel de bala, traques, até pó-de-mico uma vez soltaram no cinema. Tinha um lanterninha que de vez em quando saía puxando um pela orelha, debaixo de vaias.

Minha cidade, quando nasci há mais de meio século, não era tão pequena assim. Digo, era pequena, mas tinha certa arrogância de sociedade bem frequentada por gente de fora, que praticava esportes de elite, como o tênis. Nasci em uma estância hidromineral, com águas termais e certa tradição turística. No balneário, um hotel enorme e caro, ligado ao prédio dos banhos, domina o cenário. Era lá que meu pai trabalhava de porteiro. E minha mãe, de camareira, em outro hotel, mais modesto, frequentado por funcionários públicos do estado.

Sou de uma família pobre: salários baixos, oito bocas para alimentar e algum conformismo fizeram com que nos aboletássemos numa casa modesta, com vizinhança igual à gente mesmo. Escola pública, longas caminhadas, filhos começando a trabalhar cedo, com doze ou treze anos. Mãe fazia pé-de-moleque pra gente vender na rua: o sol quente, o caminho de poeira, os vizinhos comprando mais por solidariedade que por necessidade.

Quando entrei para a escola comecei a aprender coisas que me seguiriam por toda a vida. Não as coisas que os livros traziam, mas outras. Tive uma professora que achava uma ofensa eu ser pobre. Como é que pode, uma menina loira de olhos verdes, tipo europeu, com sobrenome italiano? Se fosse preta ou mulatinha, a gente entendia... Ah! Dona Lola, sempre mal-humorada. Um dia, fui a única da turma que, no ditado, escreveu “piscina” com o “sc”. As riquinhas, que usavam sapatos de couro, saias plissadas e blusas brancas de algodão, todas erraram. Só a pobretona da saia pregueada, blusa de poliéster e sapato de borracha acertou.

- Onde você aprendeu essa palavra, menina?
- Numa placa lá da piscina que a gente nada.
- É? E que piscina é essa?
- Do tênis clube.
- Sei... aquela da água verde-escuro?
- É sim senhora. A gente nada lá. E tem uma placa escrito assim: “No recinto da piscina, somente com roupa de banho”. Foi lá que eu aprendi.

Dona Lola estava debruçada sobre minha carteira, com os grandes olhos castanhos muito perto da minha cara. Fechou a cara por um segundo, mas logo se aprumou e jogou a cabeça para trás, gargalhando duas ou três vezes. Quando olhou novamente para a frente, estava séria.

- Quer dizer que você lê placas, né? Muito bem.

Eu tinha oito anos e não entendi o que era aquilo. Só mais tarde, juntando outros episódios da minha vida, com outros personagens, é que eu viria a vislumbrar um certo ódio, maior que o simples preconceito, que fazia as pessoas não aceitarem uma criança branca, loira, bonita e... pobre! Era um problema lidar com isso: os ricos e remediados não admitiam que eu fosse pobre e os pobres não me aceitavam porque eu parecia rica. Mas foi mais fácil conviver com a garotada que andava descalça, encatarrada e moleca, do que com as professoras, as coleguinhas ricas, os padres, os professores e todos os tipos que tinham algum prestígio na cidade.

No grupo escolar, aprendi que aluno pobre, no recreio, brincava de um lado do pátio sem invadir o outro lado, isso depois de comer o arroz-doce ralo e quase cru servido só para os que eram da “caixinha”, os que não tinham dinheiro para levar seu próprio lanche. Também as turmas eram divididas em adiantadas e atrasadas e por coincidência nas primeiras estavam os filhos dos ricos e nas segundas os filhos dos pobres. O meu caso era uma chateação, porque me destacava na leitura e na escrita, o que obrigou a diretora a me colocar na turma dos adiantados. Daí minha inadequação, que incomodava mais os outros que a mim mesma. No geral, as professoras que tive nos primeiros anos escolares foram inexpressivas: só Dona Lola me marcou, pelo preconceito declarado e assumido.


O irônico desta história é que Dona Lola não era branca. Hoje tenho a certeza de que, com seus lábios grossos e sua pele parda, minha tão sensível professora era mestiça.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Pausa para meditação


(Dizem que uma pausa valoriza qualquer narrativa. Eu penso que não é tanto a pausa em si, mas o silêncio do narrador quando os leitores estão ávidos pela continuidade.

Penso nos jornais do século XIX, que traziam os capítulos de folhetins escritos por José de Alencar, aguardados avidamente pelas leitoras - sim, a maioria era de leitoras! Assim é que foram publicados inicialmente livros como Cinco minutos, A viuvinha e O guarani. Joaquim Manuel de Macedo (A moreninha), Machado de Assis (Helena, por exemplo) e Manoel Antônio de Almeida (Memórias de um sargento de milícias) foram escritores que iniciaram a publicação de suas obras nos jornais, capítulo a capítulo, brincando com a curiosidade dos leitores.

Daí se dizer que as novelas de televisão são hoje o nosso folhetim eletrônico. Guardadas as diferenças históricas e tecnológicas, o princípio é o mesmo dos folhetins de antanho. Mas que perderam em profundidade, ah! com certeza! São tão superficiais as telenovelas que basta a gente assistir aos capítulos da primeira e da última semanas para dominar toda a trama!

Mas o que eu faço aqui não é um folhetim eletrônico, penso. Trata-se apenas de um exercício de imaginação, motivado por uma manifestação explícita do preconceito dos jovens de uma turminha de classe média alta de São Paulo. Socializada na internet, essa manifestação conseguiu 600 adesões, o que é de assustar.

Na minha despretensiosa narrativa, estou lidando com a desorientação, a confusão e a insegurança resultantes de um acontecimento mágico: o desaparecimento dos migrantes de uma megalópole, de um dia para o outro. Como diria minha saudosa avó, eles "anoiteceram mas não amanheceram" na cidade.

Além disso, estou lidando também com o cotidiano: reforma, mudança, organização de minha biblioteca, doação de livros para movimentos sociais, leituras, viagens, tentativas de escrever, convivência com minha família, carinho para as netas...

Ufa!!! A vida é cheia de afazeres, não? Por isso, apelo a meus 28 leitores para que não percam a paciência. A vida, ops! a história não parou, ela vai ter um desfecho.)

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou IV


- Não entendo... Como vim parar aqui?

Selma olha a sua volta e reconhece imagens guardadas em algum canto da memória. Vinte anos depois de ir para São Paulo, vê-se agora inexplicavelmente transportada para sua cidadezinha no interior do Maranhão, de onde saiu aos dezesseis anos em busca de futuro melhor.

Amanhece. Ela nota que está de chinelos e com a camisola que vestiu ao se deitar ontem. Não se lembra de mais nada, apenas de ter se deitado para dormir.

Olha em frente e lá está a rua em que morava quando criança. Não há mais a sua casa, mas no lugar dela um predinho com loja de duas portas no térreo, uma varandinha logo acima da marquise e duas janelas com cortinas claras.

- Quem será que mora aqui agora?

Faz um gesto para alcançar a campainha, mas se detém. Pensa que é muito cedo, deve ter gente ainda dormindo lá dentro. Espera.

Na outra calçada da rua sem movimento, alguém abre um portão pintado de vermelho. Uma mulher sai e fica olhando para Selma.

- Marinalva? Graças a Deus! Lembra de mim?

- Selma?! Vixe, é você mesmo? Não acredito! Mas que faz aqui, assim, de camisola? Corre, dê cá um abraço!

Amigas de infância sofrida e adolescência idem, as duas se encontram no meio da rua vazia. Um abraço demorado traz de volta antigos afetos, reconhecem-se como se o tempo não tivesse passado.

- Vem cá pra dentro, acabei de passar o café, já ia comprar o pão. Vem, amiga, a casa é sua. Eles ainda estão dormindo, meu marido e meus filhos, mas daqui a pouco acordam.

Na casa modesta Selma conta a Marinalva o que não sabe. Não sabe como veio parar ali, não se lembra do que aconteceu.

- Sabe? Agora há pouco no rádio deu uma notícia de coisas estranhas acontecendo em São Paulo. Gente que desapareceu, muita gente mesmo. Diz que a cidade está na maior confusão.

- Ah, Marinalva, então eu sou uma das pessoas que desapareceram. Não tem outra explicação.

- Toma, amiga, veste esta roupa minha, vamos até a padaria. Quem sabe a gente fica sabendo de mais alguma coisa lá?

Selma está perplexa. Quer saber onde estão as outras pessoas de sua família, que ficaram para trás quando ela fugiu para São Paulo. Pai, mãe, irmã e irmãos.

- Toda a sua família foi pra São Luís, pouco tempo depois que você sumiu. Acho que seu pai tinha esperança de encontrar você lá...

Saem rumo à padaria. No caminho, encontram outras pessoas vagando pelas ruas, desnorteadas.

- Vixe! Não foi só você que voltou, Selma! Olha ali o Nonatinho, lembra dele? Estava em São Paulo também. Aqueles outros eu não conheço, mas aquela senhora mais velha parece a mãe da Deusina, lembra? Ela largou a família e sumiu, já faz uns dez anos!

- Jesus! Que confusão é essa, amiga? O que que nós estamos fazendo aqui? Será que um poder maior despachou todos os nordestinos de São Paulo de volta pro Nordeste?

- Sei não, amiga! Vamos ver se na padaria as pessoas estão comentando alguma coisa...

O cheirinho do pão fresco no ar lembra aquele das manhãs paulistanas, quando Selma vai cedinho comprar o pãozinho para o café da manhã da família.

Na padaria, seu Manoel está em uma manhã agitada. Muita gente estranha aparece para pedir informação. Homens e mulheres querem saber o nome da cidade, dizem não saber o que fazem ali. Em meio aos aromas de pão e café, ele repete a notícia que ouviu no rádio:

- Sumiu muita gente de São Paulo. Se a senhora mora lá, então vai ver que é por isso que está aqui.

- Sumiu como, Seu Manoel? Aqui, encontrei a Selma, que saiu daqui há vinte anos... Ela foi pra São Paulo e apareceu lá na rua em que a gente morava!

- Eu eu sei, Marinalva? Só sei que esse povo todo apareceu na cidade de manhãzinha, todo mundo meio tonto, desnorteado. O que eu posso fazer é repetir a notícia que deu no rádio hoje cedo. Diz que São Paulo amanheceu bem vazia...

- Será que os nordestinos todos resolveram voltar? Mas a Selma nem sabe como veio parar aqui...

- Disse no rádio que não foram só os nordestinos, não. Todo mundo que não era de lá sumiu.

- Meu Deus! Ai, Marinalva, que que eu faço? Eu tenho uma vida lá em São Paulo!

- Então, amiga! Vamos lá em casa ligar a televisão e ver se tem mais alguma notícia. Já está na hora de começarem os jornais. Mas me conta, como é sua vida lá?

Selma quase começa a contar sua história em São Paulo, mas alguma coisa a faz se calar. Pensa que Marinalva está lá, no mesmo lugar, com sua casa, seu marido e seus filhos. E ela? Durante todo esse tempo, ficou trabalhando de casa em casa, até parar mais tempo com uma família. De seu, tem apenas o que cabe no quarto de empregada. Ah, para que contar isso a alguém?

Sua cidade natal está bem maior agora, tem asfalto, energia elétrica, comércio. Dói pensar que talvez devesse ter ficado. Fugiu em busca de futuro, vive em São Paulo uma vida apagada, sempre trabalhando e morando nas casas de outros. E se tivesse ficado? Será que teria uma vida igual à de Marinalva?...

Pela TV, as amigas veem: São Paulo está parada, vazia, caótica. Como uma cidade amanhece assim, sem metade de sua população, da noite para o dia?

(continua...)

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou III

Ela tenta chegar a casa com as crianças. Mas o trânsito está confuso. Há carros abandonados nas ruas, com as portas abertas. Qualquer obstáculo torna muito lenta a ida para seu condomínio nos Jardins.

Embora a cidade esteja estranhamente vazia de gente nas ruas, está também estranhamente desorganizada, com lojas fechadas, semáforos desligados, aparência de abandono. Era para o trânsito ser mais ágil, mas ocorre o contrário.

Liga o rádio e tem de apertar várias vezes o botão, até conseguir sintonizar uma emissora. Apenas música. Nada de noticiário. Continua dirigindo. No banco de trás, uma das meninas pergunta:

- Mãe, por que está tudo diferente hoje? Não tem ônibus e táxi, só uns poucos...

- Não sei, filha, só sei que temos de chegar em casa rápido e ficar lá, esperando tudo voltar ao normal. Quem sabe a Selma já chegou?

Já é quase meio-dia, quando começa a descer a rua onde fica seu prédio. Olha para um e outro lado e percebe que o lugar, sempre movimentado, tem as lojinhas fechadas e pouca gente a pé. Mas vê que a padaria de seu Alonso está aberta. Dá uma paradinha, abre o vidro do carro e vê o dono lá dentro, com ar de desorientação.

- Ei, seu Alonso, tudo bem aí?

- Hem?... Ah, sim, tá tudo bem... acho... não sei. Os empregados não vieram, nem o padeiro que contratei em Minas apareceu, hoje não pude vender pão...

- Olha, seu Alonso, estão dizendo que está tendo ataque do PCC pela cidade. Acho melhor o senhor fechar a padaria e ir para casa...

Acelerou sem esperar resposta, porque uma buzina tocava atrás de seu carro.

Acionou o controle remoto para abrir o portão de entrada do condomínio e percebeu que o porteiro não estava. Chegava finalmente à segurança do prédio, dentro em pouco estaria em casa com as meninas. Era só esperar que o marido também chegasse.

Nada da Selma, nenhum telefonema, nenhuma explicação. Resolve olhar o quarto da empregada. Tudo está como se ela não tivesse saído: a cama desarrumada - "Engraçado, parece que ela se deitou ontem à noite e depois resolveu sair..." - as roupas no armário, os sapatos na pequena prateleira do canto, a bolsa sobre o criadinho, com tudo dentro: carteira, dinheiro, documentos. Começa a pensar que a Selma não saiu à noite, parece ter sido levada.

O marido chega depois de alguns minutos. Está com cara de incrédulo, tem um ar de perplexidade.

- Querida, você não imagina como está a cidade. Parece que não tem gente suficiente para garantir que tudo continue funcionando! Está um caos!

- Ah, sabe o que eu acho? Isso não é coisa do PCC, de jeito nenhum! Parece que milhões de pessoas simplesmente desapareceram. Sumiram! A Sofia está na internet, conversando com as amiguinhas e elas estão dizendo a mesma coisa: que sumiu muita gente.

- Pois é, lá no escritório, algumas pessoas não apareceram. A dona Socorro, a Yoko, o Eustáquio... Engraçado, são todos funcionários que tem famílias em outros estados! Mas será...?

Ele não quer acreditar no que acaba de pensar. Será que sumiram só os que não são de São Paulo?!

- Peraí! O porteiro do nosso prédio é do Ceará... A dona Socorro uma vez me disse que nasceu na Bahia... O Eustáquio veio de Minas há um ano... A Yoko foi contratada quando ainda morava em Curitiba, onde nasceu... Será que é isso?!

- Você quer dizer que sumiram todos os que não são de São Paulo? Ih, pode ser isso mesmo... O seu Alonso da padaria disse que o padeiro, que também é de Minas, não apareceu. Ai, meu Deus! A Selma é do Maranhão, vai ver foi por isso que desapareceu! Tudo dela está lá no quarto, do jeitinho que ela deixou ontem, quando foi dormir!

Correram os dois para a frente da TV, exatamente no momento em que o noticiário mostrava uma São Paulo como eles nunca tinham visto: milhares de carros abandonados nas ruas, semáforos desligados, linhas do metrô com trens parados.

- Muda o canal, vamos ver mais!

Hospitais com muitos leitos vazios e com falta de muitos funcionários; escolas, colégios e universidades sem funcionar por falta de muitos alunos, professores, funcionários... Prédios inteiros de apartamentos completamente vazios, casas abandonadas com as portas abertas...

- Que loucura! Jamais pensei que fosse ver São Paulo assim!

Nesta tarde, ficam em casa, com a TV fica ligada. Todos parecem perplexos e intrigados. Buscam explicações para o fenômeno do desaparecimento dos migrantes da cidade. Até alguns apresentadores de programas televisivos estão ausentes, as transmissões são precárias, porque faltam muitos funcionários também nos meios de comunicação.

Enquanto esperam, tentam imaginar a cidade tão enorme, tão cosmopolita, agora meio vazia, ou meio cheia, depende do ponto de vista: cheia de paulistanos da gema, vazia de todos os migrantes que a fazem funcionar. Quase instintivamente, o casal chega à janela do apartamento.


Pela primeira vez marido e mulher não sabem explicar por que, mas sentem no ar uma sombra de perigo e ameaça, indefinida...

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou

(O texto a seguir é ficcional. Qualquer semelhança com fatos ou pessoas reais não é mera coincidência, visto que a arte imita a vida e vice-versa.)

Acordou estranhando o silêncio naquela quarta-feira. Não ouviu o costumeiro barulho na cozinha, não sentiu o cheirinho do café fresco, sentiu falta de alguém cantarolando baixinho.

- Selma?... Selma!... Ué, cadê a Selma, gente? Cadê o café da manhã?

Logo veio o marido e ela estava atrapalhada na cozinha, tentando preparar o café da manhã, antes que as crianças saíssem do quarto.

- Cadê a Selma?

- Não sei, não está aqui.

- Será que ela não dormiu em casa? Mas ela nos deu "boa noite" ontem, dizendo que ia dormir...

- Pois é, não dormiu aqui. E sabe-se lá a que horas vai chegar...

Chegam as crianças, duas garotas de 10 e 12 anos, já com roupa de escola. Olham em volta e veem que é um daqueles raros dias em que a Selma não está em casa. Veem a mãe tirando queijo, leite e suco da geladeira. Pão, só o de ontem, porque a Selma é que devia ter comprado cedinho... Café tem de ser o solúvel mesmo, a água já estava fervendo no microondas.

- Engraçado, a televisão não está passando o jornal matinal - diz o pai.

- Hoje está um dia muito esquisito, querido... fala a mãe. - Estou achando o ar mais silencioso, não ouço o barulho dos ônibus e já são quase 8 horas... Será greve dos rodoviários?

- Terminaram, meninas? Então vamos, já estamos atrasadas - diz a mãe. Tchau, querido, bom dia! Depois de deixar as meninas na escola, vou fazer as compras do mês. Quando eu voltar a Selma já estará aqui, para guardar tudo e fazer o almoço.

- Tchau, querida, vejo você à noite. Ah, quem me dera poder vir almoçar com vocês... Impossível, com o trânsito de São Paulo! - falou isso com orgulho de ser paulistano.


Mal andou dois quarteirões e ele já está irritado com o trânsito, mais lento do que o normal. Não vê aquela quantidade enorme de ônibus que sempre o atrapalham, apenas três ou quatro. Mas está vendo muito mais carros na rua.

- "Deve ser greve" - pensa. "Saco! Todo dia tem alguma coisa para atrapalhar."

Atrasado, coloca o carro no estacionamento pago, a meio quarteirão do escritório. No caminho, percebe que a banca de revistas está fechada. Estranha. Sempre compra o jornal antes de entrar no centro empresarial e bate um papo rápido com seu Nonato, o dono da banca, que conhece há mais de 10 anos.

Ele sempre dá uma passadinha rápida no café do térreo do centro empresarial, compra um para viagem e sobe pelo elevador. Mas hoje só há três garçonetes, em vez das oito habituais. Fila no caixa. Desiste do café, corre para pegar o elevador. Ao descer no andar do escritório, percebe que está mais vazio. Vários colegas de trabalho ainda não chegaram: o Eustáquio, a Yoko, o Gilvan, a Socorro, o Raoni...

- É, deve ser greve mesmo. De rodoviários, metroviários, sei lá...

Mal se senta e seu celular começa a tocar. É a esposa:

- Querido, não sei o que fazer. A escola está sem um terço dos professores. A diretora não sabe o que aconteceu, ninguém avisou nada. A Clarinha tem professor para três horários e a Sofia para dois. Que que eu faço?

- Será que os professores estão em greve?! Mas não, é escola privada, não tem greve, né?

- Não, parece que eles simplesmente faltaram, não chegaram para trabalhar.

- Ah, então, leva as meninas para casa. Melhor, leva elas para as compras com você, depois vão todas para casa. Amanhã a coisa deve se normalizar.

De novo a irritação, porque o telefone do escritório toca sem parar. Droga! Despede-se rapidinho da mulher e atende, porque a Socorro não está. É a Flavinha, estagiária:

- Doutor, tô ligando pra avisar que hoje não vai dar pra chegar aí, aqui em Itaquera tá a maior confusão, trânsito parado, lojas fechadas, canteiros de obras vazios. Ninguém sabe o que está acontecendo.

- Ah, Flavinha, deve ser alguma greve...

- Não é, não, doutor. É alguma coisa estranha, estão faltando pessoas nas ruas, nas casas, nas lojas, nos prédios em construção... Tudo muito esquisito, parece que sumiu todo mundo... Os nossos vizinhos da frente saíram e deixaram a casa aberta.

- Tá bem, Flavinha, não esquenta. Se não der pra chegar aqui, fique em casa. Tchau!

Esquisito. Ele percebe que está mesmo é faltando gente na cidade. São Paulo sempre tem tanta gente nas ruas. Mas agora, olhando pela janela do escritório, ele vê bem menos gente transitando. No prédio em que trabalha, o movimento dos corredores está reduzido.

Liga de novo a mulher:

- Querido, tá a maior confusão no supermercado. Faltam vários funcionários, não tem reposição de produtos, não tem açougueiro, nem padeiro, pouquíssimos caixas. Não sei como vou fazer as compras...

- É, querida, tem alguma coisa errada. Tá faltando gente em vários lugares da cidade.

- Olha, aqui tem uma televisão ligada e vai ter edição extra do jornal. Vou desligar e te ligo de novo, pode ser alguma notícia para a gente saber o que está acontecendo.

Enquanto espera, ele liga o computador e busca notícias nos portais dos principais jornais. Nada, apenas uma notícia de que o maior hospital da cidade está funcionando de forma precária, porque muitos profissionais não compareceram ao trabalho.

Volta a tocar o celular. E a mulher:

- Ai, querido, a notícia que deu na televisão é de que São Paulo amanheceu com menos de 50% da população. Será possível? Para onde foi todo mundo? Ah, liguei lá em casa e a Selma ainda não apareceu...

- Pois é, alguma coisa aconteceu e as notícias são insuficientes. Eu jurava que era alguma greve, mas agora começo a pensar que é outro ataque do PCC, sei lá...

- Ai, querido, vou pra casa agora mesmo com as crianças. Dá um jeito de ir você também, tá? Não demora, está me dando um medo...

- Calma, bem! Vai com calma, não se preocupe com as compras. Eu também vou, encontro vocês em casa.
(Continua...)

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Uma "frase infeliz"

O apresentador do Jornal da Band, Boris Casoy, foi pego pela armadilha do microfone aberto. O jornal passava a vinheta, após uma chamada para a notícia da mega-sena de fim-de-ano, depois de mostrar dois garis desejando feliz ano novo. Boris, então, comentou com sua colega apresentadora:

- "Que merda, dois lixeiros desejando felicidades do alto das suas vassouras. Dois lixeiros. O mais baixo da escala do trabalho." (Clique aqui para ver o video)

Nesse momento, uma voz avisa: "Deu pau, deu pau. Tá no ar."

Chocante? Para alguns deve ter sido. Mas não para mim, que conheço o caráter do jornalista desde os tempos da ditadura militar, laboriosamente escondido atrás dos bordões que criou como apresentador de jornal: "Isso é uma vergonha" e "É preciso passar o Brasil a limpo".

Essas expressões sempre me pareceram frases de efeito, usadas por moralistas para induzir o interlocutor no julgamento de alguma questão ou fato jornalístico. Quem as usa sabe que precisa ter comportamento irrepreensível, não tem direito sequer a um escorregão verbal que denuncie o mínimo preconceito em relação a qualquer tipo de pessoa.

Ora, o que Boris Casoy fez foi revelar seu preconceito de classe, desqualificando o trabalho digno de dois garis no último dia do ano passado, quando todos se preparam para comemorar a chegada do futuro, com toda a esperança que carregam em suas almas e corpos cansados do trabalho pesado.

Deve ter chovido mensagens de protestos na redação da Band, porque hoje ele pediu desculpas, ao vivo e em cores:

- "Ontem eu disse aqui uma frase infeliz, que ofendeu os garis. Peço profundas desculpas aos garis, ao telespectador e à Rede Bandeirantes."

Só isso. Acabo de presenciar a cena. E saio da sala para escrever este post, com a certeza de que todo moralista é, no fundo, um imoral.