quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O dia em que São Paulo parou III

Ela tenta chegar a casa com as crianças. Mas o trânsito está confuso. Há carros abandonados nas ruas, com as portas abertas. Qualquer obstáculo torna muito lenta a ida para seu condomínio nos Jardins.

Embora a cidade esteja estranhamente vazia de gente nas ruas, está também estranhamente desorganizada, com lojas fechadas, semáforos desligados, aparência de abandono. Era para o trânsito ser mais ágil, mas ocorre o contrário.

Liga o rádio e tem de apertar várias vezes o botão, até conseguir sintonizar uma emissora. Apenas música. Nada de noticiário. Continua dirigindo. No banco de trás, uma das meninas pergunta:

- Mãe, por que está tudo diferente hoje? Não tem ônibus e táxi, só uns poucos...

- Não sei, filha, só sei que temos de chegar em casa rápido e ficar lá, esperando tudo voltar ao normal. Quem sabe a Selma já chegou?

Já é quase meio-dia, quando começa a descer a rua onde fica seu prédio. Olha para um e outro lado e percebe que o lugar, sempre movimentado, tem as lojinhas fechadas e pouca gente a pé. Mas vê que a padaria de seu Alonso está aberta. Dá uma paradinha, abre o vidro do carro e vê o dono lá dentro, com ar de desorientação.

- Ei, seu Alonso, tudo bem aí?

- Hem?... Ah, sim, tá tudo bem... acho... não sei. Os empregados não vieram, nem o padeiro que contratei em Minas apareceu, hoje não pude vender pão...

- Olha, seu Alonso, estão dizendo que está tendo ataque do PCC pela cidade. Acho melhor o senhor fechar a padaria e ir para casa...

Acelerou sem esperar resposta, porque uma buzina tocava atrás de seu carro.

Acionou o controle remoto para abrir o portão de entrada do condomínio e percebeu que o porteiro não estava. Chegava finalmente à segurança do prédio, dentro em pouco estaria em casa com as meninas. Era só esperar que o marido também chegasse.

Nada da Selma, nenhum telefonema, nenhuma explicação. Resolve olhar o quarto da empregada. Tudo está como se ela não tivesse saído: a cama desarrumada - "Engraçado, parece que ela se deitou ontem à noite e depois resolveu sair..." - as roupas no armário, os sapatos na pequena prateleira do canto, a bolsa sobre o criadinho, com tudo dentro: carteira, dinheiro, documentos. Começa a pensar que a Selma não saiu à noite, parece ter sido levada.

O marido chega depois de alguns minutos. Está com cara de incrédulo, tem um ar de perplexidade.

- Querida, você não imagina como está a cidade. Parece que não tem gente suficiente para garantir que tudo continue funcionando! Está um caos!

- Ah, sabe o que eu acho? Isso não é coisa do PCC, de jeito nenhum! Parece que milhões de pessoas simplesmente desapareceram. Sumiram! A Sofia está na internet, conversando com as amiguinhas e elas estão dizendo a mesma coisa: que sumiu muita gente.

- Pois é, lá no escritório, algumas pessoas não apareceram. A dona Socorro, a Yoko, o Eustáquio... Engraçado, são todos funcionários que tem famílias em outros estados! Mas será...?

Ele não quer acreditar no que acaba de pensar. Será que sumiram só os que não são de São Paulo?!

- Peraí! O porteiro do nosso prédio é do Ceará... A dona Socorro uma vez me disse que nasceu na Bahia... O Eustáquio veio de Minas há um ano... A Yoko foi contratada quando ainda morava em Curitiba, onde nasceu... Será que é isso?!

- Você quer dizer que sumiram todos os que não são de São Paulo? Ih, pode ser isso mesmo... O seu Alonso da padaria disse que o padeiro, que também é de Minas, não apareceu. Ai, meu Deus! A Selma é do Maranhão, vai ver foi por isso que desapareceu! Tudo dela está lá no quarto, do jeitinho que ela deixou ontem, quando foi dormir!

Correram os dois para a frente da TV, exatamente no momento em que o noticiário mostrava uma São Paulo como eles nunca tinham visto: milhares de carros abandonados nas ruas, semáforos desligados, linhas do metrô com trens parados.

- Muda o canal, vamos ver mais!

Hospitais com muitos leitos vazios e com falta de muitos funcionários; escolas, colégios e universidades sem funcionar por falta de muitos alunos, professores, funcionários... Prédios inteiros de apartamentos completamente vazios, casas abandonadas com as portas abertas...

- Que loucura! Jamais pensei que fosse ver São Paulo assim!

Nesta tarde, ficam em casa, com a TV fica ligada. Todos parecem perplexos e intrigados. Buscam explicações para o fenômeno do desaparecimento dos migrantes da cidade. Até alguns apresentadores de programas televisivos estão ausentes, as transmissões são precárias, porque faltam muitos funcionários também nos meios de comunicação.

Enquanto esperam, tentam imaginar a cidade tão enorme, tão cosmopolita, agora meio vazia, ou meio cheia, depende do ponto de vista: cheia de paulistanos da gema, vazia de todos os migrantes que a fazem funcionar. Quase instintivamente, o casal chega à janela do apartamento.


Pela primeira vez marido e mulher não sabem explicar por que, mas sentem no ar uma sombra de perigo e ameaça, indefinida...

Um comentário:

Valéria Barros Nunes disse...

Ai, que aflição!!! vai dando uma claustrofobia, né? fiquei imaginando se os ETs teriam um tipo de GPS que pudesse identificar no mapa quem não é de Brasília, por exemplo. Imaginei Brasília sem mineiros, paulistas, gauchos, goianos... sem mim! Seria a cidade que nunca foi. Doido, isso!
Adorei o texto, todo organizadinho com os pontos e travessões, com gente e imaginação!
abção!