sábado, 3 de março de 2012

O passado é pedagógico III (e último!)


Alguns dias das férias, eu os passava na casa de minha avó materna, que morava no outro lado da cidade. Ela era dessas pessoas que sabem como fazer um neto ou uma neta feliz. Tinha comigo conversas longas e me deixava livre para brincar em um córrego que cortava a rua, junto com outras crianças dali. Todos nós andávamos descalços, brincávamos na terra e na água, jogávamos bola, jogávamos pedras no mato com estilingue, subíamos em árvores, soltávamos pipa e jogávamos bolas de gude. De tardinha, banho tomado, ficávamos ouvindo as conversas dos adultos nas varandinhas das casas ou na rua mesmo.

Meninos brincando - Candido Portinari
Uma vez, ao chegar para as benditas férias, os meninos e meninas da vizinhança só falavam de uma nova vizinha. A mãe era brava e a filha era linda como um anjo, eles nunca tinham visto mais bonita. A menina quase não saía de casa. Só ia para a escola de mãos dadas com a mãe, só voltava para casa com ela. Tinha a mesma idade que eu – uns dez anos. Loira, cabelos lisos e longos, olhos muito azuis, narizinho de boneca de louça... Ficava perto da janela e nós víamos, da rua, a mãe penteando-lhe os cabelos.

Um dia me enchi de coragem e, chegando perto da janela, falei com ela:

- Quer brincar com a gente?
- Não...
- Por que?
- Minha mãe disse que vocês são todos sujos e que devem estar cheios de perebas...
- Ah!
- E também eu não brinco com meninos, só com meninas.
- Ah...
- Se você quiser brincar aqui em casa, eu peço pra minha mãe.
- Não, não precisa falar... Eu gosto de brincar é aqui fora, na rua mesmo. Com os meninos.
- Tá. Tchau.
- Tchau.

E todo dia, quando brincávamos, sempre tínhamos de parar a bola para esperar a mãe passar com a menina que parecia um bibelô.

No ginásio, a coisa não foi muito diferente. Sim, sou do tempo do ginásio e estudava inglês e francês! Pelo menos a escola pública fazia a gente conviver com a diversidade: tinha gente muito mais pobre que eu, tinha negros, tinha feios. E tinha as meninas e os meninos ricos, que pareciam mais bem vestidos, bonitos e limpos dentro do mesmo uniforme. Dos professores, alguns foram marcantes: a de língua portuguesa dos dois primeiros anos sempre jurava que iria me reprovar; a de educação moral e cívica ficava a aula inteira repetindo o discurso da ditadura militar sobre os valores da pátria e da família – era preguiçosa, não escrevia no quadro de giz e nem se levantava da cadeira. Nos dois últimos anos do ginasial, o professor de português, além de me obrigar a aprender gramática e a gostar de escrever, me ensinou também a gostar de literatura.

Escrevo hoje pensando nele, professor João Rios, que, no início de cada ano, passava uma lista de livros para serem lidos até o final do período. Ninguém precisava comprar, estavam todos na biblioteca municipal. De vez em quando a bibliotecária, uma velhinha beata, exercia seu poder de censura e não deixava a gente levar os livros que julgava impróprios para menores. Tínhamos de ouvir um sermão sobre os valores da família cristã ameaçados pela má literatura. Aí o pau comia: seu João fazia uma visita à biblioteca e, quando voltávamos, a senhorinha estava uma seda. Líamos de Dostoievsky a Jorge Amado, de Camus a Graciliano Ramos, de Flaubert a García Márquez. De vez em quando, seu João fazia uma pausa nas aulas de gramática, sorteava um dos livros da lista e falava longamente sobre ele. Entenderam? Era um professor que nos fazia ler, mas não havia prova de leitura, nem fichamento de livro para avaliação, nada dessas coisas. E quando, nessa pausa, ele falava sobre um livro que eu já havia lido era como se abrisse novas janelas para o mundo. Para entender o mundo.



Não sei como eu conseguia ler quase dez livros por ano, nos dois anos que estudei com seu João. Eu era rueira, não parava em casa, tinha colegas e amigos pela cidade toda. Gostava de nadar no clube dos pobres. Lá, de vez em quando, apareciam técnicos esportivos, que nos ensinavam natação e vôlei. Eu acho que eram contratados pela prefeitura e que o clube era público, mas nunca me preocupei com isso. Houve um tal Eli, que ensinava as modalidades de natação e promovia até competições em cidades vizinhas. Teve também um seu Raimundo, que ensinava natação e vôlei. Era um chato, mas era bom técnico. Depois de anos que saí da cidade, tive notícia dele pela Internet, sempre ligado aos esportes.

Hoje meu irmão me conta que esse era um projeto do Ministério do Exército, durante a ditadura militar. Tratava-se de não deixar os jovens enveredarem pelo caminho da política, enquanto seu tempo era todo tomado por compromisso com os treinadores, que os levavam a competições e atuavam como verdadeiros preceptores, aproveitando as lições do esporte para ensinarem também valores, geralmente os mais reacionários, hegemônicos na época da ditadura militar.

Mas acho que isso não teve influência sobre mim. Enquanto praticava esportes e era, sem perceber, manipulada para ser despolitizada, tinha, em contrapartida, um valoroso professor de literatura me abrindo janelas para entender o mundo e fazer as escolhas ideológicas que me tornaram quem sou hoje.

Por isso posso dizer que sobrevivi a duas pragas: o preconceito social e a ditadura militar.



segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico II

As reminiscências da época da escola primária continuam.

Minha vida escolar na pequena cidade foi muito proveitosa. Na época eu não tinha ainda condições de formar a visão da escola como espaço de reprodução das práticas sociais. Mas isso ficou muito claro um pouco mais tarde, e foi a partir do que vivenciei. Educação laica? Nem pensar. Era a escola – pública – que nos preparava para a primeira comunhão, assim como era no espaço escolar que se realizavam algumas das festas da igreja. 

Um detalhe cômico: a professora que me preparou para a primeira comunhão nos passava muito medo com a possibilidade de a hóstia ficar grudada no céu-da-boca:

- Se a hóstia gruda no céu-da-boca, é sinal de que houve mentira na confissão ou não teve arrependimento sincero...
- E como é que se faz, professora? Se grudar...
- Ah, se enfiar o dedão para soltar a hóstia, é pecado! Só pode passar a língua e, se não soltar, tem de esperar até derreter.

Quem, depois disso, ia se deixar flagrar com o dedo na boca? Todo mundo ia fazer cara de anjo, com a hóstia grudada lá, fingindo que não tinha acontecido. 

 
Era o mês de maio e, um dia, eu disse a minha mãe que queria ser escolhida para coroar a nossa senhora, vestida de anjo. Eu tinha mais ou menos nove anos.

- Você, minha filha? Para mim, ninguém merece mais. Você é linda mesmo como um anjinho. Mas não vai ser escolhida...
- Por que, mãe? Eu quero tanto!
- Por que, antes de escolher a criança para fazer isso, a escola manda um bilhete pedindo autorização dos pais...
- Então?... A senhora deixa?
- É que junto com a autorização tenho de concordar em comprar a roupinha, as asas, a tiara, o véu...
- E?...
- Isso custa caro, benzinho...
- A senhora não tem dinheiro?
- Não...
- Mas eu posso vender pé-de-moleque, mãe!
- Pode, bem, mas mesmo assim o dinheiro não vai dar...

Hoje faço ideia de quanto essa conversa custava para minha mãe. Mas eu nem pensava no constrangimento dela, quando cheguei da escola, contando como havia sido a cerimônia de coroação, enquanto ela terminava de fazer o almoço.

- Ah, mãe, foi lindo demais! A santa ficava lá, bem no alto da escada toda enfeitada de flores! Flores de todas as cores. A diretora ficava bem ao lado da santa e, do outro lado, o padre. As crianças todas em fila no pátio, cantando aquelas músicas da missa - “Vestida de branco ela apareceu...”
 - Imagino...
 - E depois veio subindo a escada devagar, a Maria Augusta, vestida de anjo, com o cabelo pretinho e bem liso embaixo da tiara brilhante... até no véu tinha umas florzinhas... ela foi subindo, uma túnica de cetim branco brilhando, brilhando... foi subindo, carregando uma almofadinha vermelha, de veludo, e em cima dela a coroa, que parecia de prata, e brilhava, brilhava... Tudo brilhava muito, mãe!
 - Sei... Foi bonito, então?
- Ah, foi lindo, lindo demais!
- Pois então... quem sabe no ano que vem você vai coroar a santa...
- É, mãe, quem sabe...
 
 
E quando minha mãe se virava para o fogão, mexendo as panelas, eu a interrompia de novo:
 
- Mas, mãe, por que a Maria Augusta foi escolhida para coroar nossa senhora? Ela nem parece anjo!...
 
Minha mãe não respondia, mas eu via que, mexendo sem parar as panelas, ela suspirava.