terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Votos para um novo ano e um novo mundo

Se for para surgir um mundo em que não haja discriminação, intolerância e preconceito contra toda diferença que represente uma ameaça...

Se for para surgir um mundo em que o acúmulo de coisas não seja o metro pelo qual as pessoas são avaliadas na vida social...

Se for para surgir um mundo em que os bichos sejam amados apenas até o ponto em que não sejam mais bem tratados que as pessoas...

Se for para surgir um mundo em que todo homem e mulher tenha direito a terra, pão e trabalho...

Se for para surgir um mundo em que não haja grandes fortunas de um lado e bolsões de miséria de outro...

 

Se for para surgir um mundo em que não haja o monopólio das comunicações a serviço dos poderosos...

Se for para surgir um mundo em que não haja poderosos e todos os homens e mulheres possam viver em condições de igualdade...

Se for para surgir um mundo em que países não se atribuam direitos de invadir outros para impor seus modelos de "democracia"...

Se for para surgir um mundo em que populações inteiras não sejam enganadas por governantes que adotam discursos de austeridade administrativa...

Se for para surgir um mundo em que homens, mulheres e crianças sejam ouvidos sobre o tipo de relação que devemos estabelecer com os recursos naturais do planeta...


Se for para surgir um mundo cujos museus mostrem percursos de solidariedade e não de saques a outros povos...

Se for para surgir um mundo (espaço reservado aos leitores que queiram formular seus votos de ano novo para um novo mundo)...

 

Então, que seja verdadeira a previsão dos maias e venha 2012, o ano do fim deste mundo que fomos capazes de (des)construir e que não desejo deixar para as futuras gerações.

Porque se nossas crianças apenas suspeitarem que mundo estamos lhes legando, vai ser difícil prestar contas de todo este caos.


domingo, 11 de dezembro de 2011

De mafiosos e suas máfias

Hoje me deu vontade de passear por este blog. Reli postagens antigas, como se estivesse matando saudades de mim mesma. Reli também comentários - poucos - de leitores e confirmei o que já sabia: este é o blog menos comentado que conheço. Mas continua sendo lido, como me informam as estatísticas do blogger.

Então, se continuo sendo lida, isso reacende em mim o desejo de configurar a existência deste blog como um espaço muito necessário para minha vida. Escrever e saber que há pessoas que nos leem é muito bom e ao mesmo tempo meio intimidador.

Estou embarcando em novo projeto, que talvez resulte em novo livro. Desta vez não é pesquisa da literatura brasileira, mas resgate da memória recente do país. No tempo oportuno farei aqui a divulgação desse trabalho.

Enquanto isso, muitos assuntos rolam na velha mídia e, em maior proporção, fora dela - nos blogs e sites independentes, alguns que já foram até tachados de "sujos" por certo político.

Em nível nacional, o escândalo do momento é o livro do jornalista Amaury Ribeiro Jr., denominado "A privataria tucana". Chegou dia 9/12 às livrarias e teve a primeira edição esgotada em dois dias. Você pode ler aqui e aqui sobre esse que está sendo considerado o melhor trabalho de jornalismo investigativo dos últimos dez anos. Se quiser conhecer os meandros complicadíssimos da lavagem de dinheiro pelo esquema tucano, com José Serra à frente, há um video e textos também aqui.


Em Brasília, uma sucessão de denúncias contra o governo tenta fabricar um escândalo. Há muita coisa suspeita, que Agnelo e seu grupo precisam explicar. É inadmissível que eles sejam iguais aos que durante tanto tempo combatemos na política local. Por isso, todos os denunciados até agora tem de dar explicações, não basta negar as denúncias.

Mas um detalhe chama a atenção quando comparo os dois casos, o livro-bomba de Amaury Jr. e as denúncias em Brasília, ambos relacionados com o financiamento privado das campanhas políticas: de um lado há o silêncio obsequioso da grande máfia midiática. Para jornalões como a Falha, ops, Folha de São Paulo e Correio Braziliense, é como se o livro não existisse. Nem uma linha sequer sobre seu lançamento. Já o último episódio do policial desequilibrado que invadiu a antessala da casa civil do GDF tem sido repercutido à exaustão, com cobrança indignada de explicações.

Daí que, vendo essas coisas, fico aqui pensando... Se eu fosse uma "consultora" especializada em forjar escândalos para comprometer políticos, um cuidado que tomaria diz respeito a não deixar óbvia a armação. Esse cuidado passou despercebido aos idealizadores das denúncias no GDF, que, ao tentarem incluir no rol dos incriminados o deputado Paulo Tadeu, excederam-se na espetacularização da denúncia, desnudando seu caráter falso e evidenciando a maquinação para assassinatos de reputação. Sempre contando com a cumplicidade da máfia midiática.

Há uma lição preciosa no livro do Amaury: a de que existe forte cumplicidade entre a mídia corporativa, os especuladores do grande capital, os grandes empresários e os políticos que os representam. Essa cumplicidade é responsável por fazer com que, por exemplo, até as pessoas mais esclarecidas tenham o senso crítico embotado e se deixem enganar pelas notícias e pelos comentaristas dos meios de comunicação. Hoje mais do que nunca estou convencida de que, no Brasil, a imprensa não "dá" as notícias, mas as fabrica.

Alternativas? Procurar notícias em alguns poucos veículos estrangeiros - dado que essa cumplicidade parece ser global, basta ver como a imprensa tem tratado os golpes de estado dos bancos contra a democracia na Europa. Mas, principalmente, frequentar sites e blogs de pessoas, jornalistas ou não, que corram atrás da notícia, em seu sentido original de "acontecimento digno de disseminação, reflexão e discussão".

domingo, 20 de novembro de 2011

O mundo sem meu pai

Minhas desculpas aos leitores pelo sumiço. Fui pega pela roda da vida e não tive, do dia 4 de setembro para cá, tempo/vontade de escrever. Explico.

Hoje faz um mês que meu pai morreu. E não está sendo nada fácil lidar com isso.

Eu sempre pensei que saberia enfrentar esse momento, pois a morte de alguém querido é sempre um fato previsível quando estamos em idade avançada. Meu pai se foi dez dias antes de completar 93 anos. E estava lúcido e consciente, lutando para não se entregar à fraqueza que insistia em derrubá-lo.

(Foto de Diogo Brunacci)

Mas a sensação de perda é inevitável. O luto pela ausência é doloroso. Hoje eu me flagro pensando em meu pai todos os dias. Quando ele estava vivo e eu tinha certeza de que podia lhe falar a qualquer hora, sua imagem não vinha a todo momento em minha mente. Hoje vem. Não passei um dia sequer sem pensar nele.

Há em mim, permanentemente, vaga sensação de que perdi alguma referência. Isso é meio contraditório, porque meu pai e eu discordávamos em muita coisa. Conversávamos sobre quase tudo e às vezes até brigávamos, mas nunca tivemos raiva um do outro. Um buraco, um vão, um oco foi o que me restou, agora que não o tenho mais aqui.

Nestes dias, tenho vivido situação paradoxal: o vazio que meu pai deixou tem me preenchido mais do que a presença dele, quando vivo. Acho que o luto é isso: é a gente vivenciar a ausência com tanta intensidade que, em um dado momento, essa ausência adquire dimensão de presença, é quando deixa de ser falta para ser "um estar em mim", nas palavras do poeta.

Ausência

Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência, essa ausência assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.

(Carlos Drummond de Andrade)


Assim é: meu pai, Júlio Brunacci, estará sempre nas minhas lembranças, nas imagens que compõem minha memória afetiva, nos traços físicos que dele herdei, na matéria amorosa que constitui minha existência, de minhas filhas, de minhas netas...

Sempre!

domingo, 4 de setembro de 2011

Um dia de campo

Um bom programa de fim-de-semana foi a visita que fizemos às chácaras do Grupo Vida e Preservação, nas proximidades de Padre Bernardo. É uma associação de produtores de verduras, legumes e frutas cultivadas sem o uso de agrotóxicos, que são entregues na minha casa toda semana.


Em iniciativa inédita, esses produtores convidaram os consumidores para passarem a manhã de sábado no assentamento, onde conheceram as plantações e puderam comprovar o uso de técnicas de cultivo tradicionais, inclusive com o controle biológico de pragas. Muito interessante.

Antes de conhecermos as chácaras, assistimos ao filme "Mosaico de olhares", que relata a luta desses agricultores familiares para comercializarem diretamente a produção, sem a exploração de outra "praga biológica" que são os atravessadores, os que, nos esquemas tradicionais de comercialização, lucram mais do que os trabalhadores que labutam de sol a sol nas plantações.

Quem mais gostou do programa foram as crianças, que aprenderam de onde vem as verduras que os adultos se esforçam para fazê-las comer. Comeram morangos e carambolas, alface americana colhida na hora, cenouras e muitos outros produtos.


A visita foi encerrada com delicioso almoço: salada variadíssima, legumes também variados, um delicioso angu de milho verde, creme de espinafre e galinha caipira, tudo isso acompanhado por sucos de morango, laranja e acerola. Bom demais. Foi um sábado tranquilo, em que conhecemos pessoas muito boas, trabalhadoras, cujas iniciativas nos dão bela lição de associativismo.

Quanto a mim, principalmente depois do lançamento do último filme de Sílvio Tendler - O veneno está na mesa -, estou mais do que nunca convicta da necessidade de consumir sempre produtos da agricultura familiar, os chamados "orgânicos", pois está comprovado: ao latifúndio não interessa que o Brasil deixe de ser o campeão mundial no uso de agrotóxicos.

Se você tem interesse em comprar os produtos do Grupo Vida e Preservação, coloque um comentário depois deste post, deixando seu e-mail, que eu lhe mando o número do telefone para encomendas.


sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A pedagogia do turismo

De volta a Brasília, depois de exatos 58 dias fora do Brasil, curto a delícia de estar em casa, novamente senhora do meu ambiente, completamente livre da sensação incômoda de estar incomodando alguém ou de estar em ambientes diferentes, quando não totalmente estranhos.

A viagem foi muito boa. O tempo maior de permanência em Paris teve razão afetivo-familiar. O giro por Portugal e Espanha foi divertido, relaxante e - como direi? - pedagógico.

A gente aprende muito quando anda por outras plagas. Aprende a reconhecer a alteridade e os limites da diversidade, que não é pequena, mas é restrita, se é que me entendem. A cada vez que vou à Europa, percebo o aumento do número de migrantes, que intensifica o colorido de roupas e peles nas ruas das metrópoles. É uma diversidade festejada, comemorada, mas, ao mesmo tempo, com "cada um no seu quadrado". Uma coisa é diversidade, mas daí a se falar em miscigenação vai distância grande.

A diversidade em Paris, nas comemorações do 14 de julho

Chegamos a Portugal na semana em que os noticiários alarmavam a população com a crise econômica. Em decorrência da crise grega, os bancos portugueses, que haviam emprestado muito dinheiro ao governo grego, viram-se ameaçados. E retraíram o crédito em Portugal. O noticiário falava insistentemente na reunião de uma certa "troica", que ocorreria na Bélgica, para cuidar da crise portuguesa. Descubro que a "troica" era, na verdade, formada pelos representantes do FMI, Banco Mundial e Banco Central Europeu.

Dessa reunião participaram também a primeira-ministra da Alemanha e o presidente francês. Decidiu-se pela injeção de alguns bilhões de euros na economia portuguesa, mas com as devidas contrapartidas, pelo governo português, de redução dos gastos do estado - e consequentemente de seu papel regulador das atividades econômicas. Era a velha cartilha neoliberal, imposta sempre que um país endividado ameaça calote.

Após essa solução, diziam os noticiários que os portugueses podiam respirar aliviados, porque o estado saberia gerir a crise com os recursos liberados pela União Europeia. Eis que então os banqueiros saem da moita e vão a público cobrar do governo português que saldasse seus débitos, se quisesse garantir a volta da oferta de crédito. Chantagem pura e simples, via meios de comunicação. Mas os portugueses, ao que parece, já respiravam aliviados. De férias, nas praias.


Depois de curtir quatro dias em Lisboa e três no Porto, rumamos para a Espanha. Uma viagem muito interessante, de ônibus, até Madri, observando as mudanças na paisagem enquanto adentrávamos mais e mais a península ibérica. Extensas plantações de oliveiras às vezes tornam monótona a vista.

Também a Espanha começava a se preocupar com o rebote da crise grega sobre sua economia. As medidas propostas pelo governo eram as mesmas do receituário português: corte de gastos públicos, aumento de idade para aposentadoria, redução de gastos com benefícios sociais etc.

O campo devastado do interior da Espanha

Ficou claro que o tratamento recebido pelos dois países nas reuniões dos organismos financeiros da Comunidade Européia deve-se a que se trata de duas economias periféricas na Europa. Impressionou-me o porte autoritário da primeira-ministra alemã e a desenvoltura do presidente francês, servilmente ladeados pelo pândego primeiro-ministro da Itália, também ele às voltas com a falência iminente do estado.

As imagens eram claras: no jogo de forças em que se debate a União Europeia, o poder está com a Alemanha e a França. Esses dois países coordenaram as reuniões que discutiam a crise econômica e deram solenemente seu aval para as propostas de empréstimos aos primos pobres. Poder: essa é a palavra.

O mundo assiste à desintegração do dólar, ameaçando pela primeira vez em décadas a hegemonia americana. A União Europeia tem de cuidar para que não seja abalada pela crise, sob pena de também ter sua hegemonia ameaçada. Cuidar-se significa socorrer os países em processo falimentar e tentar manter uma unidade econômica para não sucumbir às crises cíclicas do capitalismo. Mesmo que para isso os países da periferia europeia tenham de abrir mão de sua soberania.

Barcelona: a rebeldia no ar

Em tempo, um recado a alguns portugueses de Lisboa que deixaram claro, por atitudes, que não gostam de brasileiros: o Brasil de hoje - e os brasileiros que para aí vão, em busca de oportunidades - é aquilo que Portugal, como nação que protagonizou a expansão do capitalismo europeu, foi capaz de produzir. Sorry!

sábado, 9 de julho de 2011

Da falta que a internet faz

Este é um post breve, apenas para avisar a meus 37 leitores inscritos e aos demais leitores eventuais que minhas atividades neste blog encontram-se em recesso forçado.

Encontrar sinal de wi-fi pelas paragens francesas é raro. Pensei que o acesso a internet aqui fosse mais democratizado, mas qual!

Por isso peço-lhes paciência; qualquer dia desses volto a escrever com tempo.

Au revoir!!!

domingo, 12 de junho de 2011

"Eta trem bão", essa escola!

Cada vez que vou a um evento na Escola Classe 304 Norte volto convencida de que é uma escola pública muito boa. Nela estudaram minhas filhas. Agora estuda minha neta mais velha. Sim, sim, eu sei que o tempo está passando e tenho que pintar o cabelo com cada vez mais frequência. Por isso é sempre bom registrar essas recordações, antes que se percam na areia difusa de um passado que ajudei a escrever.

Eu já narrei AQUI um pouco de minha vivência como mãe de alunas dessa escola, nos anos 80, quando a participação da família foi fundamental para se dar início a um projeto político-pedagógico com foco na gestão democrática e nos princípios da cidadania e da solidariedade.

Hoje, ao voltar lá para a festa junina, fico feliz ao constatar que tais parâmetros ainda norteiam o fazer educacional, o que faz dessa escola um espaço privilegiado para os estudantes poderem construir sua autonomia, em busca da emancipação.

Apenas como exemplo das ações ali desenvolvidas, vejam como foi a gincana solidária promovida antes da festa junina:


Percebem? Nessa atividade não se escamoteia a competição, mas ela é colocada a serviço de outros princípios, tais como o da solidariedade. E a premiação contempla atividades que agregarão valores a esse princípio. Registre-se que a gincana foi assim definida em reunião com todas as turmas, quando os alunos puderam opinar e suas contribuições foram incorporadas à organização do evento.

Para a comemoração junina, com apresentação de quadrilhas e comidas típicas, também houve decisão coletiva, que orientou o trabalho de pesquisa das turmas para a preparação das atividades. Assim foi que uma turma de alunos mais velhos optou por homenagear Luiz Gonzaga, entremeando a dança com a narração da vida desse artista popular, executando a coreografia dos diferentes ritmos de suas músicas: baião, xote, xaxado etc. Tudo isso acompanhado da devida criação plástica:


Já a turminha da Sofia dedicou-se a produzir um mural que dialogasse com a obra do pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi. Reparem:


Agora comparem com o original:


Vício de vó professora: converso com Sofia para ver o quanto ela aprendeu com essas atividades e me surpreendo. Ela sempre aprendeu mais do que supus.

Fico feliz porque o processo que iniciamos nos anos 80 continua. Como é próprio do fazer educacional, não há como considerar que isso é tudo a ser desenvolvido. Não há finalização possível, porque sempre se agregam mais conteúdos e valores, em um exercício permanente de educação laica, que forma os alunos para a vida. Não qualquer vida: aquela que se faz espaço permanente de crítica, de autonomia, de cidadania.

Nessa escola, o princípio da gestão democrática, do qual estão imbuídos o corpo docente, a direção e o movimento de pais e mães de alunos, nada tem a ver com organizar eventos para arrecadar dinheiro. Ele é mais um momento marcante de integração e de aprendizado, que não se restringe ao espaço intramuros, mas age também sobre a sociedade fora da escola, assim como recebe a influência dessa sociedade e se constitui em lugar de reflexão e questionamento da vida social.

Essa é uma experiência que deve ser socializada e proporcionada a todas as escolas da rede pública de Brasília, não tenho dúvida.

O tema da festa junina foi "Eta trem bão!" Trem bão de festa, trem bão de escola!!!


sexta-feira, 3 de junho de 2011

Brasileiros como eu e você!

Que me perdoem os leitores por insistir no tema. Depois do post anterior, foram registradas mais duas mortes de trabalhadores do campo: Erenilton Pereira dos Santos, morador do assentamento agroextrativista Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna (PA), no sábado (28 de maio); e, de ontem para hoje, Marcos Gomes da Silva, na zona rural de Eldorado dos Carajás, também no Pará, mesmo cenário do massacre de 19 trabalhadores sem-terra em 1993.

Marcos Gomes da Silva também teve uma orelha cortada, da mesma forma que José Cláudio e Maria do Espírito Santo. Essa é a senha usada pelos pistoleiros para provar aos mandantes dos crimes que o alvo foi abatido.

Há muitos trabalhadores rurais marcados para morrer. Denúncias são feitas todos os dias, mas a garantia do direito à vida não se estende até os habitantes do Brasil profundo, terra em que a lei do capital prevalece sobre todos os princípios de defesa do meio ambiente e dos direitos humanos mais elementares. E esse Brasil profundo não está tão longe quanto você pensa, lá na longínqua floresta amazônica. Não. Ele está também em São Paulo, no Paraná, em Minas Gerais, no Tocantins, no Mato Grosso, em Alagoas, no Distrito Federal e por aí vai. Veja aqui o relato de uma trabalhadora rural jurada de morte pelos madeireiros.

Não se pode pensar que a ação dos madeireiros é isolada, porque não é. Eles são a linha de frente do avanço do latifúndio sobre a floresta. São eles que primeiro devastam as terras que irão se transformar em pastagens ou em plantações de soja. E a sanha devastadora se acelerou depois da aprovação na Câmara Federal do novo Código Florestal, com clara vitória da bancada ruralista. A certeza da impunidade tem lá seus efeitos. Leva, inclusive, uma líder da bancada ruralista no Senado Federal a dar declarações em que banaliza os assassinatos dos trabalhadores rurais.

Em apenas 10 dias, lá se foram Zé Cláudio, Maria, Dinho, Erenilton e Marcos. Nomes tão brasileiros, de brasileiros que tinham rostos, vozes, ideais. Brasileiros como eu e você!

Zé Cláudio e Maria

Adelino, o Binho

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Nenhum minuto de silêncio, mas toda uma vida de luta"

Tento resistir a usar apenas uma palavra para designar meu sentimento pelos acontecimentos recentes na velha guerra que se desenrola no campo brasileiro: vergonha.

Antes que me refizesse do impacto causado pela notícia do assassinato de José Cláudio e Maria do Espírito Santo, a mando de madeireiros, em Nova Ipixuna, no Pará, chega-me a informação de que ocorreu, hoje, outro assassinato: desta vez a vítima foi Dinho, sobrevivente do massacre de Corumbiara, em 1995. Dinho foi pego de surpresa pelas balas de um motoqueiro, enquanto vendia verduras perto do acampamento onde vivia com a família, na região de Porto Velho (RO).

Os companheiros dos movimentos sociais do campo realizaram manifestação na manhã de hoje na ponte rodoferroviária Carajás, sobre o rio Tocantins, em Marabá (PA), sem imaginar que poucas horas depois estariam perdendo mais um companheiro que também vinha denunciando a ação de madeireiros na região em que vivia.


Só me resta utilizar este modesto espaço de reflexão para protestar com todas as forças contra as mortes dos companheiros que lutam pela justiça no campo, e contra a repetição incessante das circunstâncias dos assassinatos. Sempre a mando da mais arcaica e atrasada modalidade de posse da terra, desde sempre na história das relações sociais brasileiras: o latifúndio.

Ou será que alguém pensa que a indústria do desmatamento não tem vinculações com os grandes proprietários de terra, aos quais interessa substituir a cobertura vegetal da região norte por capim, para alimentar as centenas de milhares de cabeças de gado que usam para ocupar ilegalmente as terras? Parece-me, inclusive, que essas mortes foram impulsionadas pela recente vitória dos ruralistas na votação das emendas ao código florestal brasileiro. Essa turma deve estar se sentindo mais poderosa do que a justiça que deixa impunes os mandantes dos assassinatos. E a impunidade é o mais claro sintoma da barbárie que se instala com estardalhaço nas relações sociais arcaicas predominantes no campo.

Impossível ficar indiferente a tanto descalabro. Enquanto nossa imprensa desvia o foco para a pretendida inadequação dos livros didáticos oferecidos pelo MEC, a guerra corre solta, cada dia com violência maior, naquele Brasil desconhecido da maioria dos brasileiros urbanos, que convenientemente não tomam conhecimento da violência e da truculência com que o latifúndio - hoje elegantemente denominado agronegócio - elimina seus opositores.

Não há minuto de silêncio dedicado a José Cláudio, Maria do Espírito Santo e Dinho; há sim a intensificação da luta pelos ideais que defenderam junto com seus companheiros e companheiras que, em todo o país, lutam pelo direito a terra, pão e trabalho.


A todos os meus amigos e amigas do MST e de todos os movimentos sociais do campo, minha irrestrita solidariedade em mais este momento de dor pela perda de tão valorosos militantes.

terça-feira, 17 de maio de 2011

Ainda sobre o "livro do MEC"

- Professora, eu gosto muito das aulas de português.
- Que bom! Mas...?
- Bem, professora, essas coisas que a senhora ensina, de regência, de concordância, e tal...
- Que que tem?
- Bem, quando eu volto lá pro interior, pra fazenda do meu pai, sabe, eu não posso ficar falando do jeito que a senhora ensina aqui.
- Por que?
- Porque se eu falar com os filhos dos vaqueiros, meus amigos desde que era menino, que eu prefiro ir AO cinema A assistir À missa, eles vão falar que eu fiquei metido a besta, só porque vim estudar na cidade.
- Como assim?
- Lá, a gente tem de falar que prefere ir no cinema do que assistir missa. Senão eles pegam no pé.
- É isso. (A professora agora assumia seu ar professoral.) Você tem de saber que há situações em que pode falar errado.
- Posso?
- Pode.
- Certeza?
- Se você quiser. (A professora agora está desconfiada.) Mas também pode aproveitar e ensinar seus amigos a falarem de acordo com a norma culta que você aprende aqui na escola.
- Ah! Não, eu prefiro falar do jeito deles. Sabe como é, né? Senão eles perdem a confiança em mim.
- É uma escolha sua. Mas você sabe que, por exemplo, quando for fazer uma entrevista para emprego, não deve falar como fala quando está com seus amigos, não sabe?
- Sei sim, professora. Mas eu não vou ter esse problema não, porque eu nunca vou procurar emprego.
- Ah, não?
- Não. Eu vou é ser o dono da fazenda, quando meu pai passar ela pra mim.
- Verdade?
- Verdade. E aí eu vou fazer questão de, quando falar com eles, falar certinho, usando a norma culta.
- Mas por que?
- Ué, professora, pra marcar a diferença: patrão é patrão, né?
- É, vejo que você aprendeu bem o que significa usar a língua como instrumento de poder.
- É, graças às aulas de português.

* * *

Acredite, esse diálogo não é ficcional. Ele aconteceu mesmo, na sala de aula de uma escola pública que recebe alunos do interior de Minas. Se a professora acreditava que todos os alunos devem receber a mesma educação, sem discriminação de classe social, raça ou religião, ela deve ter se considerado bem sucedida no trabalho de ensinar aos alunos como lidar com as variações linguísticas. De fato, o aluno evidenciou a apreensão do conteúdo, não é verdade? O posterior questionamento de sua disposição em reproduzir práticas de dominação, fazendo da norma culta um instrumento para isso, também deve ter ocorrido. Essa professora teve, com certeza, tempo para levá-lo à reflexão e imagino que o tenha feito.

Pois bem. A professora ministrou um conteúdo previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, os famosos PCNs, que é o da "variação linguística". Trata-se de fenômeno corriqueiro, mas que não é sistematizado pelos gramáticos, ciosos de seu papel de conservar, preservar e defender a língua (aqui restrita à concepção de norma culta, uma das suas variações) da corrupção e da degeneração que a fala cotidiana lhe provoca.

Pronto. É esse o campo fértil para a falsa polêmica que tomou a mídia brasileira nos últimos dias, levando-a a acusar o MEC de distribuir um livro didático que "ensina ao aluno que ele pode cometer erros de concordância." A mídia parece pensar que as escolas tem de ensinar apenas a norma culta, sonegando ao aluno o direito de saber que existem diferentes falares, diferentes registros para uma mesma e única língua. E que o registro culto é apenas um deles. Daí o escândalo, com direito à carranca do William (Homer Simpson) Bonner e beicinho da Fátima Bernardes em horário nobre. E na Band, o repórter msn(*) chega ao ponto de entrevistar um professor de gramática para concursos públicos. É muito amadorismo!

Nessa polêmica, faço minha a posição, bem como os argumentos, do linguista Marcos Bagno, que você pode ler AQUI. E também essas reflexões, do Miguel do Rosário, cujo mérito é nos lembrar da existência de grandes poetas como Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, que tão bem valorizaram outro registro de nossa língua, que não a tal norma culta.

Na falta de algo mais promissor a que se agarrar para atacar o governo - e também na tentativa de neutralizar uma possível candidatura à prefeitura de São Paulo -, nossa máfia midiática volta as baterias contra um livro didático. Mas sua munição tem o mesmo efeito de um traque: só barulho, nenhuma credibilidade.

Enquanto isso, leio no Correio Braziliense de hoje que, na Comissão de Educação do Senado, o oportunista Cristovam aproveita para ajudar a minar o governo por cuja base foi eleito. Mau caratismo, má fé ou ingenuidade?

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(*) muito sem noção!

segunda-feira, 25 de abril de 2011

"Siga o dinheiro!"

É tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo! O mundo da informação na internet às vezes se transforma no inferno da informação...

Enquanto vejo as loas da TV brasileira ao próximo casamento real no Reino Unido, acompanho também os protestos da comunidade acadêmica do CEFET-MG contra as retaliações do MEC, tuíto (adoro esses neologismos!) sem parar, vejo o que rola no facebook, comemoro a Revolução dos Cravos, assisto a vídeo do Chico Buarque cantando Tanto Mar,


Chico Buarque - Tanto Mar por mariusangol

leio as chamadas dos principais portais de notícias, passeio pelos blogs de todo dia, tuíto novamente, pesquiso no google, dou pitaco na polêmica sobre projeto de lei do RS que limita o uso de estrangeirismos, visito o sítio do Wikileaks para ler sobre os inocentes presos em Guantánamo, enfim, passo a manhã em atividade frenética frente ao computador.

Como processar tudo isso? É preciso não esquecer que todo esse mundo de informações circulando sem cessar tem origem em uma realidade, um chão social marcado por duríssimas disputas, por guerras, por massacres, por destruições, por ideologias, por manipulações, por imposições, por disfarces e por dissimulações.

Não sou otimista na análise do mundo e do meu país. De vez em quando bate um cansaço, uma preguiça, um desânimo, como se fosse a repetição incessante do mesmo filme: preconceitos de toda ordem são disseminados impunemente, sob o beneplácito dos meios de comunicação, das escolas, das religiões, enfim, daqueles aparelhos ideológicos que fazem com que as coisas pareçam mudar para que fiquem como sempre foram.

Mas é como disse um pensador italiano: a gente tem de ser pessimista na análise, sempre, para que a indignação e a vontade de fazer as mudanças impulsionem nossa ação, nossa interação com outras pessoas tomadas pelos mesmos sentimentos e pela mesma vontade de perseguir o que parece ser utópico, mas tem lá sua concretude a nos esperar no horizonte em construção.

Pois então. Ao mencionar preconceitos que grassam por aqui e alhures, detenho-me no sentimento que parece predominar em relação aos mais pobres. Desde que um operário foi presidente da república, o ódio de classe tão laboriosamente escondido nas relações sociais passou a aflorar em manifestações incontidas de preconceito. Porque é impensável, para o pensamento elitista, que um pobre saiba mais o que fazer para melhorar o país do que os ricos que o precederam foram capazes de saber. Porque é impensável que os pobres recusem o tratamento paternalista a eles dispensados pelos ricos, que se recusem a ser tutelados, que se recusem a viver de favores.

Sim. Porque o favor e o jeitinho são historicamente os subterfúgios utilizados pelos ricos para manter os pobres na dependência, como se não fossem capazes de gerir os próprios destinos. Vejamos algumas situações de hoje, que perpetuam esse vício arcaico da nossa sociedade.

Sérgio Bianchi, em seus filmes Quanto vale ou é por quilo? e Cronicamente inviável, representa bem essas relações, já também representadas na nossa literatura, desde Machado de Assis - o primeiro é uma adaptação do genial conto "Pai contra mãe". Depois de assistir aos filmes de Bianchi, você pode se perguntar: por que ele "desanca" as OnG (organizações não governamentais)?

Mas, se prestar atenção, verá que não são as OnG o objeto de sua crítica: elas são apenas a roupagem contemporânea da velha relação entre elite e pobreza. E não é difícil comprovar isso, no contato direto com a realidade dos pobres no Brasil. As OnG ocuparam o lugar que antes era monopolizado pela velha figura do "atravessador". Só que elas se especializaram em "atravessar" dinheiro público, obviamente em troca de um naco respeitável do recurso intermediado. Assim, os filhos das classes média e alta criam suas OnG e apresentam aos governos federal, estaduais e municipais projetos sociais, ambientais, agrícolas, que irão beneficiar pobres nas cidades, preservar o meio ambiente, ajudar os agricultores familiares, etc etc, para os quais requerem recursos.

Agora vejam uma situação que presenciei: 1) uma prefeitura, em (in)voluntária cumplicidade com uma OnG, especifica as medidas que deverão ter os alimentos a serem adquiridos para a merenda escolar do município (por força de lei, 30% desses alimentos devem ser comprados da agricultura familiar); 2) a OnG convoca uma cooperativa dos pequenos produtores para fornecer os produtos; 3) a cooperativa convoca as associações dos assentamentos para fornecerem os produtos; 4) as associações mobilizam seus assentados para suprir a demanda da prefeitura.

Primeiro problema: para atender às especificações da prefeitura, não é possível que os produtos sejam cultivados sem adubos químicos. Adeus, merenda saudável. E lá vão os pequenos agricultores aderir às práticas do latifúndio, não porque o queiram, mas por imposição da necessidade de sobrevivência.

Segundo problema: do preço contratado para a produção, 30% ficam com a OnG, 20% com a cooperativa, 10% com a associação. Sobram 50% para serem divididos entre os agricultores, proporcionalmente ao que cada um conseguir produzir. Isso os obriga a baixar os preços e os desanima de continuar fornecendo seus produtos para o município.

Agora me diga: por que um esquema desses funciona? A resposta é simples, ou, como diriam dois jornalistas americanos de antigamente: "Siga o dinheiro!"



sexta-feira, 1 de abril de 2011

Uma perda: o mundo sem o Prof. João Rios


Hoje eu soube da morte de um querido professor de Araxá, João Rios. A notícia chegou no momento em que saía em viagem. Sob forte emoção, antes de pegar a estrada, fomos, meu irmão e eu, dois ex-alunos, prestar-lhe a última homenagem e abraçar a esposa.

Desde a semana passada me ocorrera fazer a ele uma visita, infelizmente não concretizada. Profundo arrependimento me incomoda por não tê-lo encontrado antes do enfarte que lhe tirou a vida e privou o mundo de um intelectual cuja importância em minha formação é incomensurável.

Estive com o Prof. João por duas vezes, ano passado. A primeira foi para uma conversa agradabilíssima sobre meu primeiro livro, Graciliano Ramos, um escritor personagem. A segunda, para presenteá-lo com outro, que escrevi em coautoria com dois colegas/amigos, Catálogo de benefícios: o significado de uma homenagem, também em torno de Graciliano Ramos. Nessa ocasião, a promessa de voltar para uma terceira visita, adiada por motivos diversos, e agora definitivamente impossível...

Se há alguém que posso chamar de "meu tipo inesquecível", é João Rios. Estudei com ele dois anos seguidos, nos tempos do antigo ginasial. Era professor de língua portuguesa e iniciou-me na literatura brasileira. A cada início de ano, passava-nos uma lista de 10 livros de autores brasileiros, de diferentes períodos, todos disponíveis na biblioteca pública. A gente ia lendo e ficava esperando o dia em que ele "cobraria" a leitura, mas isso não acontecia. O que acontecia era uma aula em que o professor comentava um dos livros, trocava ideias sobre ele conosco, ajudava-nos a entender a linguagem, os significados, as relações entre a obra literária e a sociedade em que vivíamos, nos anos de chumbo da ditadura empresarial-militar que assolou o Brasil por 21 anos.

Éramos meninas e meninos de 13, 14 anos e tínhamos um professor que, além de nos ensinar a escrever bem, exercia conosco a leitura emancipadora, em pleno período de repressão política e alienação forçada da juventude. Estudar com o Professor João Rios foi garantia de nos tornarmos seres pensantes, críticos e politicamente atuantes.

Na dedicatória do segundo livro com que o presenteei, lembro-me de ter escrito: "inesquecível professor". Eis o consolo com que tento dissipar o arrependimento por não tê-lo visitado: como bom leitor que era, tenho certeza de que soube entender a importância que teve na minha vida.

Hoje, ao constatar que o mundo está sem o Professor João Rios, sinto-me um pouco órfã...

quarta-feira, 30 de março de 2011

Sanatório geral (com licença poética)

Peço desculpas aos meus 34 seguidores e aos eventuais leitores pelo sumiço. Ando fora de Brasília, com internet 3G, que, cá pra nós, é uma lástima. Se você sai da cidade de origem, o modemzinho começa a trabalhar devagar, quase parando. E às vezes para mesmo, matando a gente de raiva. Em tempo: o meu é da Claro.

Agora, respire fundo, porque o texto aqui é longo e penoso; o assunto é espinhoso e a reflexão é dolorosa.

Dois assuntos se destacam entre os que atraíram minha atenção nos últimos dias: as polêmicas declarações de um certo sr. Bolsonaro, de cunho racista, homofóbico e sexista; as discussões sobre a reforma política no Congresso Nacional.

As tais declarações de um parlamentar que representa a face mais visível da extrema direita nacional, de tão absurdas, nem deveriam ser objeto de polêmica: é valorizar demais o produto mal-cheiroso de quem precisa recorrer a esse subterfúgio para se manter em evidência na mídia.

Parlamentar apagado, diria eu que até incompetente, Bolsonaro não passa hoje de uma excrescência produzida pela formação dispensada aos militares, ainda hoje, nas "academias", quartéis, casernas, clubes e círculos militares. Herdeiros do que há de mais arcaico na visão positivista de mundo, mesclada ao viés ideológico equivocado da combalida doutrina da segurança nacional, esses seres humanos devem ser urgentemente alertados, para que comecem a pensar autonomamente, pautados por princípios republicanos de cidadania e direitos humanos.

Esses bolsões do pensamento político retrógrado teimam, ainda hoje, em "comemorar" o 31 de março - que na verdade foi um 1º de abril - como aniversário de uma pretendida "revolução" que não passou de golpe apoiado pela raivosa UDN e por agentes estadunidenses. Sua consequência foi a deposição de um presidente democraticamente eleito, considerado ameaçador pelas reformas de base que pretendia executar neste país.


O golpe empresarial-militar, ainda hoje defendido pelo tal sr. Bolsonaro, mergulhou o Brasil em 21 anos de retrocesso político, com a repressão brutal aos movimentos sociais, a tortura e o assassinato de quem se opunha à ideologia verde-amarela do "milagre brasileiro", capitaneado pelo ex-superministro da Fazenda Delfim Netto e outros tantos colaboradores do regime, como José Sarney e Marco Maciel, o defunto Antonio Carlos Magalhães, o vivíssimo Jarbas Passarinho, o portavoz-matador-de-lebres Alexandre Garcia e um bando de políticos que hoje, na nossa democracia cambembe, ainda exercem mandatos por aí, depois de terem aprendido as "boas práticas" da governança como governadores e prefeitos "biônicos", como ficaram conhecidos aqueles guindados aos cargos públicos por nomeação dos ditadores militares.

O pior é que esses ratos de gabinete produziram crias e mais crias, que reproduzem aqui e acolá suas práticas antirrepublicanas: assaltam os cofres públicos, corrompem e são corrompidos escandalosamente; acostumaram-se a encarar a política como processo de apropriação do coletivo pelo pessoal; do público pelo privado; do Estado pelo capital.

Aí é que entram as discussões sobre a reforma política. O que se pretende, verdadeiramente, com a proposta do "distritão", ou seja, o voto distrital? A quem interessa a perpetuação do caciquismo político e a manutenção da primazia do poder econômico? A quem interessa o abortamento das forças políticas emergentes, impedindo sua organização em novos partidos políticos? A quem interessa o financiamento privado das campanhas políticas, com todos os esquemas imagináveis de caixa 2, ou financiamento ilegal? A quem interessa o desequilíbrio de forças na superexposição deste ou daquele candidato nos meios de comunicação? A quem interessa o pagamento de quantias enormes pela produção de peças publicitárias que vendem candidatos como cerveja, com perfil moldado mediante caríssimas pesquisas qualitativas?

Em que lugar do mundo está em vigor o voto distrital? Descobri hoje: Vanuatu. Em que lugar do mundo se permitem doações ilimitadas de pessoas jurídicas a candidatos? Veja AQUI como fazem alguns países. Há outras questões implicadas nessa proposta, que contribuem para fragilizar ainda mais o já alquebrado sistema partidário brasileiro. Eu, particularmente, me sinto lesada quando um político em que votei muda de partido. Tenho ganas de obrigá-lo a devolver o mandato, porque votei nele por ser de tal partido.

Também acho abominável que haja coligações para eleições proporcionais de vereadores, deputados estaduais e federais. Nada descaracteriza mais um candidato do que as coligações com objetivos meramente eleitorais. Veja a confusão em que se encontra hoje, por exemplo, o Distrito Federal, onde rorizistas, arrudistas, petistas, comunistas, socialistas, trabalhistas, liberais, ex-comunistas, "pandoristas" e oportunistas (de)compõem uma coligação e dizem trabalhar pela moralização da vida política local. Isso nivela por baixo todos eles e desmoraliza o trabalho dos políticos sérios.


quarta-feira, 2 de março de 2011

De que lado...?

São cada vez mais raras as pessoas que explicitam de peito aberto suas ideias. Quando alguma afirmação gera polêmica, parece instalar-se uma súbita desconfiança e a discussão passa a ser feita por meio de insinuações, indiretas, meias-verdades, não-ditos.

Tenho presenciado isso com muita frequência nas redes sociais de que participo. Algumas pessoas não hesitam em expor preferências como fruidoras da arte, da culinária, da leitura, da televisão, da cultura popular e até do sexo. Mas quando o assunto prevê posicionamento político, aparecem as negaças e a imprecisão. Noto que, predominantemente, os jovens de classe média, até a faixa dos 35 anos, são os que mais se negam ao debate.

Pois então. Tenho convivido, nas minhas andanças pelos movimentos sociais, também com jovens das populações excluídas e noto neles grande e profunda diferença de atitudes diante da vida. Seja na periferia das grandes cidades, seja nos espaços do campo, o que vejo é um contingente de batalhadores que perseguem incansavelmente um ideal, que pode ser tão-somente um padrão de vida melhor, com acesso a emprego, renda e bens de consumo; como pode ser também uma sociedade melhor, com justiça e igualdade de oportunidades. Tenho visto e o fato de poder ver me ajuda a entender recente pesquisa, publicada pelo Ministério da Justiça/Fundação Sangari, denominada "Mapa da Violência 2011 - Os jovens do Brasil".

Não há como não se chocar com os dados. O maior número de vítimas de homicídios no Brasil são jovens negros entre 15 e 24 anos! No link acima você encontra todas as tabelas com o resultado detalhado da pesquisa, por estados e municípios com maior concentração de mortalidade. Alagoas está em primeiro lugar, com seus eficientes grupos de extermínio. Em quarto lugar está o rico Distrito Federal.

O quadro nacional, no quesito "violência e juventude", é desalentador. Dá ao Brasil o 6º lugar no nefasto ranking internacional. E o mais grave: isso são números de genocídio. Um genocídio tanto mais consentido quanto mais nos omitimos.


É possível viver placidamente, sem se deixar afetar por informações como essas? É possível ficar com a consciência tranquila, assumir o ar blasé de quem não tem nada a ver com isso, de não-fui-eu-que-criei-essa-situação? É possível denominar "civilização" esse estado de coisas? É possível não se indignar?...

O lado mais frágil dessa briga - que nós, jurássicos assumidos, chamamos "luta de classes" - sempre foram os mais pobres. Os grupos de extermínio, geralmente braços clandestinos das polícias - e das políticas locais -, agem com o aval daqueles que querem um mundo sem pobres, não um mundo sem pobreza. Maceió está aí para confirmar isso: não passa uma noite sem que pelo menos um morador de rua seja executado.

Queiramos ou não, este é apenas mais um modelo de "civilização" que o homem criou desde que começou a se agrupar na Terra. E, pelo visto, mais um modelo de civilização que descambou em barbárie. A pergunta é: o que virá depois? Que mundo iremos legar para as próximas gerações?

Com a palavra, os milhões de jovens pobres - negros, brancos ou índios - historicamente marginalizados neste país.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Muito barulho... Nenhum barulho...

Tenho tido muito sobre o que refletir nos últimos dias. Leva um certo tempo para processar o significado dos acontecimentos e, o que é mais importante e urgente, estabelecer os nexos entre eles.

Assim, enquanto fico ensimesmada, a pensar no que pode significar a presença da presidenta no almoço de aniversário da Falha - ops, Folha de São Paulo - o mesmo jornal que publicou uma ficha falsa em que ela era qualificada como terrorista e que denominou "ditabranda" a ditadura que a torturou e manteve presa por três anos -, busco conexões outras que não simplesmente a da capitulação ou do aceno para a convivência civilizada. Sei que há mais do que isso em jogo, por isso penso.


Mas o que me tomou algum tempo - e provavelmente tem algum nexo com esse outro acontecimento mafiomidiático - foi a notícia de que se encerrou finalmente a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito criada em 2009 para “apurar as causas, condições e responsabilidades relacionadas a desvios e irregularidades verificados em convênios e contratos firmados entre a União e organizações ou entidades de reforma e desenvolvimento agrários, investigar o financiamento clandestino, evasão de recursos para invasão de terras, analisar e diagnosticar a estrutura fundiária agrária brasileira e, em especial, a promoção e execução da reforma agrária”.


Será que meus pacientes 32 seguidores e esparsos leitores se lembram disso? Saiu em todos os jornalões e jornalecos, em todos os noticiários de TV nacionais e locais, em todos os sites e portais de internet, em um processo infindável de repercussão de uma notícia, até a mais completa exaustão. Foi logo depois da também superexplorada notícia dos atos de vandalismo do MST contra a fazenda da Citrosuco-Cutrale, em que se informavam quebras de maquinário agrícola, derrubada de plantação de laranjas, invasão e destruição de laboratórios - tudo isso em uma fazenda privada do grande agronegócio, que funciona sobre terras griladas da União...

Na época, teve gente de esquerda comentando comigo: "Poxa, assim fica difícil defender o MST! Desta vez eles exageraram!" Parece que, por conveniência, as pessoas "esquecem" que o noticiário é todo fabricado para criminalizar os movimentos sociais no Brasil e que a mídia deste país é toda comprometida com os interesses dos poderosos. No episódio em questão, com os grandes empresários do agronegócio.

Depois desse episódio, muitas pessoas auto-intituladas "de esquerda" perderam a coragem para continuar defendendo publicamente os movimentos de luta no campo - é preciso lembrar que o MST não é o único, há outros igualmente merecedores da nossa solidariedade.

Pois bem. Duas notícias surgiram somente em 2011, a respeito daqueles dois episódios (a invasão da fazenda da Citrosuco-Cutrale e a instalação da CPMI do MST): a primeira dizia que a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo determinara o arquivamento do processo criminal contra o MST, por falta de substância jurídica para seu prosseguimento, ou seja, por falta de tipificação de crime durante o ocorrido; a segunda informava o melancólico final da referida CPMI, que, criada em ano pré-eleitoral para ser usada como munição pelo candidato da direita, fora finalizada sem proceder sequer à leitura do relatório final e sem discutir qualquer medida a ser encaminhada pelo Congresso Nacional ao poder judiciário. Simplesmente morreu...

Agora, digam-me: cadê a grande mafiomídia com seus noticiários? Cadê o estardalhaço de 2009, que criminalizava acintosamente o MST? Cadê os colunistas de pena paga para desmoralizar os movimentos sociais? Re-lo-ou!!! Cadê todo mundo? Cadê a Kátia, o Ônyx, o Caiado, cadê todos os difamadores dos trabalhadores do campo? Fabricando novas manchetes resultantes de velhas e manjadas práticas?


É isso, leitores! Assim é a máfia midiática, aqui e alhures. Por isso continuo ensimesmada, a pensar na presidenta e no almoço da Falha, ops!, Folha de São Paulo...

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

"Democracia, essa palavra!"


Sinceramente, acho uma forçação de barra a aproximação que alguns conhecidos tem feito entre a ditadura egípcia e a cubana. Ao contrário do que fazem com Cuba, ninguém descia a lenha no governo egípcio antes de o povo do Egito se mobilizar para derrubar o ditador. Por que? Ora, por que... Simplesmente se tratava de uma ditadura pró-EUA e pró-Israel. Ou seja, na geopolítica mundial, o Egito é um estado estratégico para esses dois países no Oriente Médio.

As novas gerações talvez não saibam - e muitos das velhas gerações talvez tenham convenientemente se esquecido disso - mas a história recente do Egito é uma história de golpes e cooptação. O tal Mubarak estava no poder desde 7 de outubro de 1981, ou seja, tomou o governo um dia depois do assassinato do presidente Anwar El-Sadat durante um desfile militar. O ditador consolidou um governo subserviente ao ocidente e implementou as mesmas medidas econômicas adotadas pelos países subdesenvolvidos durante os anos 90, de orientação neoliberal. O empobrecimento da população foi progressivo, embora o governo recebesse grande aporte de recursos ocidentais.

Hoje se sabe que quem saiu rico dessa história recente foi Mubarak, com gorda conta bancária na Suíça, dinheiro afanado de seu próprio povo, durante um dos governos mais corruptos do planeta. Agora resta esperar o fim da festa para vermos como vai se dar a composição inicial da nascente democracia egípcia. E torcer para que a onda de levantes populares atinja outras ditaduras da região - Oriente Médio e África - todas elas alinhadas com as potências ocidentais.

Eis o que me intriga. Não se criticam os regimes da Síria (ditadura militar desde 1970), da Líbia (ditadura militar desde 1969), Arábia Saudita (monarquia absoluta desde 1992), sem falar nos sultanatos que proliferam por ali, servidos por grande número de miseráveis. Também não se criticam as ditaduras de países africanos, como o Sudão (ditadura militar desde 1989) e a Mauritânia (ditadura militar desde 1984), ou as asiáticas. Não se cobra com a mesma ênfase o respeito aos direitos humanos nesses países, não se critica a falta de liberdade de expressão, mesmo sabendo que a internet é censurada na Líbia há três anos.

- "Ditadura é ditadura, não importa se de direita ou de esquerda" - é o que ouço sempre. E concordo. O que não dá para concordar é com os pesos diferentes para fazer o julgamento desta ou daquela ditadura. A imprensa ocidental ficou 30 anos quietinha em relaçao ao Egito. E continua calada em relação a outras ditaduras. A China, por exemplo, deixou de ser cobrada por desrespeitar os direitos humanos depois que seu governante anunciou a intenção de incrementar o comércio bilateral com os EUA... Melhor exportar 200 aeronaves do que exigir que o governo chinês liberte dissidentes, não? Como num passe de mágica, a ditadura chinesa praticamente se tornou invisível nos noticiários, depois disso. Como diriam os branquelos do norte, "it's capitalism, stupid!"

Resta lembrar que prender pessoas sem direito a julgamento justo não é exclusividade das ditaduras, mas ocorre também na mais propalada democracia do mundo, que são os EUA. Guantánamo é a prova de que os direitos humanos são desrespeitados também pela grande nação americana. Nem se fale em Abu-Graib ou na prisão militar onde está sob "interrogatório", sem direito a advogado de defesa, o acusado de vazar informações para o site Wikileaks.

Que tal a gente começar a pensar nos movimentos midiáticos que nos induzem a classificar este ou aquele país como uma ditadura? Só pra começar a exercer nossa independência intelectual...

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

"Brás Cubas, o professor e o vagabundo", por Gustavo Arnt

Em uma espécie de continuidade do post anterior, sobre Educação, publico hoje texto que recebi de um amigo, Gustavo Arnt, professor da rede pública do DF. O alerta é importante: a impressão que o GDF passa para a categoria dos professores é a de que "tudo mudou para ficar do jeito que sempre foi".

O alerta vai para a secretaria de educação, mas a questão mais grave apontada pelo autor é o sintoma da indigência política que assola a sociedade brasiliense, historicamente governada por grupos reacionários e corruptos. Se uma sociedade é o reflexo de seus governantes, eis aí o quadro analisado por Gustavo Arnt.


Brás Cubas, o professor e o vagabundo

Como é de conhecimento da maioria, infelizmente o governador Agnelo (a quem apoiei durante as campanhas e de quem ainda espero que faça um governo responsável) começou metendo os pés pelas mãos no que diz respeito à educação do Distrito Federal. Depois de nomear uma diretora morta, a Secretaria de Educação conseguiu a proeza de se superar: no dia 20 de janeiro, em quarenta minutos, convocou e “desconvocou” 1545 professores aprovados em concurso público para tomarem posse entre os dias 24 e 27 de janeiro. Sem ao menos apresentar um pedido de desculpas formal, a Secretaria simplesmente informou que não há verba para a contratação dos professores efetivos – embora desde o ano passado a equipe de transição já soubesse da enorme carência de professores na rede e pudesse ter incluído a verba necessária no orçamento; embora a mesma secretaria tenha realizado um concurso para mais de 6 mil professores temporários no dia 16 de janeiro; e embora tenha dinheiro para estádio de futebol, criação de novas secretarias, propaganda na televisão, etc., etc.

Hoje, dia 24 de janeiro, um grande grupo formado por professores aprovados no concurso, por professores efetivos do quadro da Secretaria de Educação e por representantes do SINPRO e do SINPROEP se reuniu em frente ao Palácio do Buriti para fazer uma manifestação e cobrar a nomeação imediata dos professores – em respeito aos aprovados, em respeito à categoria e em respeito aos alunos, que não podem começar o ano letivo com 1545 professores a menos em sala de aula.

Assim como costumavam fazer seus antecessores Arruda e Roriz, o governador Agnelo não apareceu, tampouco a secretária de educação, Regina Vinhaes. No entanto, mandaram seus legítimos representantes, amplamente capacitados para lidar com situações que dizem respeito aos direitos dos cidadãos: os gentis policiais! Esses, que em sua maioria enviam seus filhos para a escola pública, se viram na curiosa posição de ter de garantir que os professores que dariam aula para seus filhos não se manifestassem! Felizmente, no entanto, o movimento dos professores conseguiu se manter vivo e continuou o seu protesto, que, adianto, não alcançou o resultado esperado, já que a comissão de negociação conseguiu apenas a promessa de uma nova reunião na próxima semana, a sete dias do início do ano letivo... Em nome dos estudantes que começarão o ano letivo sem professor, gostaria, portanto, de parabenizar o governo pela agilidade e competência com que trata as questões relativas à área que ele alega ser uma de suas prioridades.

Contudo, apesar desse quadro surreal instaurado na educação do DF, o que motivou este texto não foram apenas as peripécias do governo. Fiquei particularmente tocado com a manifestação de dezenas de motoristas que passavam nas poucas faixas do Eixão liberadas pelos manifestantes. Feridos no seu direito de transitar a toda velocidade pelas pistas largas da capital, Brás Cubas e companhia, do interior do conforto de seus carros com ar-condicionado e vidro fumê, bradavam: “Vagabundos!”; “Vão trabalhar!”; “Seus desocupados!”. Alguns professores, indignados, reagiam, lançando impropérios de volta, embora seus ofensores já não pudessem mais ouvi-los. Dado o alto número de manifestações simpáticas da população motorizada, é evidente que não se trata de um gesto isolado, mas de uma ideologia amplamente difundida e arraigada, presente tanto na voz dos motoristas quanto na fala de apresentadores de televisão (quem não se lembra de Alexandre Garcia chamando professores grevistas de vagabundos e do Correio Braziliense argumentando que esses mesmos professores eram criminosos?) e na opinião até de pais e alunos, alimentados ferozmente pelo discurso dessa mídia.

Ensina um velho pensador morto, sepultado e, não esqueçam, inequivocamente superado (seria ele também um vadio?), a ideologia dominante é a ideologia da classe dominante. Sendo assim, vale a pena rastrear alguns dos fundamentos históricos que sustentam os gritos que acusam os professores de serem vagabundos. Ora, segundo a definição corrente, vagabundo é aquele que leva a vida no ócio, é indolente, vadio, não tem ocupação ou não trabalha (confesso não conhecer professor assim). Vocês vão se lembrar de que já no Império, em 1830, com medo dos efeitos do crescente aumento da população negra livre no país, a elite brasileira tratou de publicar a Lei da Vadiagem, que condenava aqueles que não tivessem ocupação honesta e útil para subsistir após advertidos por um juiz! Por incrível que pareça, a vadiagem continua sendo crime (contravenção) no Brasil – lembrem-se de que não há desemprego neste país -, constando no artigo 59 da Lei de Contravenções do Código Penal. Para aumentar ainda mais a desfaçatez, o ato ainda é inafiançável!

Como se diz na TV – e o excelentíssimo ministro do STF Gilmar Mendes não se cansa de repetir -, a justiça está acima dos interesses prementes da população (aqui entenda-se pobres), devendo prezar, acima de tudo, pelo cumprimento da Lei (entenda-se prezar pelos interesses dos ricos). Essa boa mentalidade é o que levou, por exemplo, a prefeitura de Assis, no Estado de São Paulo, a voltar a aplicar severamente a Lei da Vadiagem. Essa boa mentalidade é o que certamente levaria os tão justamente indignados motoristas do Eixão a clamarem pela prisão imediata daquela “Cambada de vagabundos!” que se manifestava em frente ao palácio do governo pedindo emprego!

Pensemos, porém, um pouco mais no significado da Lei da Vadiagem. Sob a justificativa de proteger toda a população do convívio com “vadios”, “desocupados” e “mendigos”, as elites, por meio de seu aparelho jurídico e repressivo, encontram na dita lei mais um meio de criminalizar a pobreza – afinal, se um brasileiro não tem emprego, certamente é por opção! Prova inequívoca do caráter de classe da lei (que desde sua origem esteve vinculada à raça – os vadios eram os negros) e dos impropérios é o fato de que os Brás Cubas que vivem do patrimônio familiar, da terra usurpada aos trabalhadores rurais, da mais-valia, etc. jamais são ou seriam enquadrados nessa lei. Curioso também notar que os simpáticos motoristas não notaram que eles próprios, às dez da manhã ou às três horas da tarde de uma segunda-feira, não estavam trabalhando, ao passo que os professores “Vagabundos!” estavam reivindicando o seu direito de trabalhar!

Isso me deixou confuso, leitor. Quem é, afinal, o vagabundo?

Gustavo Arnt – preto, pobre e professor

P.S.: Conclamo que compareçam à próxima manifestação, que ocorrerá na segunda-feira (31), às 9h, em frente ao Palácio do Buriti!

domingo, 16 de janeiro de 2011

A vez da Educação - Ideias para uma cidade do terceiro milênio (III)

Durante o brevíssimo período em que trabalhei na antiga Fundação Educacional do DF fiquei, por várias vezes, inconformada com certos critérios adotados pelos gestores, no que dizia respeito tanto às diretrizes curriculares quanto à carreira docente.

Havia algumas medidas que eu considerava extremamente prejudiciais ao desempenho dos professores e professoras, como, por exemplo, a política de remoção: em início de carreira, não importava o endereço, o professor/professora tinha de ir para uma escola geralmente - e invariavelmente - distante de casa. A meu ver, perdia-se algo importante para o processo de ensino e aprendizagem: o elo do professor com a comunidade escolar.

Pode não parecer, mas essa ligação é necessária. Um professor que conhece a comunidade a que pertence sua escola tem mais condições de integrar seu trabalho à realidade dos alunos. Não se pode negar que isso é desejável, para não dizer indispensável ao fortalecimento da escola cidadã e, por consequência, à boa qualidade da educação.

Um professor ou professora, algum dia, ao fazer as contas de seus gastos com transporte e alimentação enquanto trabalha tão longe de casa, pode facilmente desanimar e desistir de permanecer na rede pública. Não sei como é a política de remoção hoje, mas naquela época o tempo de serviço era o critério que possibilitava ao docente pleitear vaga em escola próxima de sua casa. Parecia proposital, às vezes parecia que mandar o professor para bem longe de sua casa era um ritual de passagem indispensável para testar sua perseverança e disposição de continuar trabalhando na educação pública. E não se admitia o questionamento de tal política, sob o argumento de que "sempre foi assim".

Outra "política" que me deixava desanimada era a prática corrente de fazer com que um professor completasse sua carga horária "tapando o buraco" da falta crônica de outro. Para vocês terem uma ideia, eu tive de ministrar a disciplina "ensino religioso" para turmas de 7ª e 8ª séries, mesmo depois de declarar formalmente à direção da escola ser ateia e ter severas restrições às religiões em geral, embora respeitasse as crenças dos alunos.

Agora, vocês conseguem me imaginar dando aulas de ensino religioso para meninos e meninas evangélicos, católicos, umbandistas e até de seitas para mim desconhecidas, como seicho-no-ie? Inimaginável, não? Obviamente, passei pela experiência de desenvolver com os alunos pesquisas em sua comunidade, sobre temas como ética, cidadania, movimentos sociais, lideranças comunitárias... Detalhe: a escola em que trabalhava era classificada como "escola rural", mas estava inserida em uma comunidade de Samambaia, bem urbana. E também recebia meninos e meninas de rua, na época denominados "menores infratores".

Foi bom enquanto durou. Mas a diretora resolveu retirar-me das aulas de ensino religioso após constatar que eu fora a única professora a não falar sobre a páscoa com os alunos, muito menos levá-los a produzir coelhinhos de cartolina, cartõezinhos coloridos para os pais, cantar com eles músicas alusivas a essa comemoração. Por quê? Eu simplesmente me esquecera, de tão ocupada que estava em tabular as respostas ao questionário que os alunos haviam aplicado, na pesquisa de campo, sobre o significado da ética em sua comunidade.

Outra coisa que me preocupa, dado que defendo o caráter laico da educação pública, é a adoção de práticas religiosas nas escolas públicas. Já narrei aqui - clique no marcador Educação, aí na coluna da direita, para ver os posts - várias situações de perda da laicidade na prática da escola pública. Lamento constatar hoje, ao acompanhar a educação de minha neta mais velha, que essas práticas nada mudaram; pelo contrário, parecem ter se radicalizado, levando para o espaço escolar a disputa por "mercado" entre as diferentes religiões.

Para não me alongar, gostaria de sugerir ao novo governo que se inicia no DF que encare corajosamente essas questões. Há numerosas outras, mas não preciso listar todas, pois sei que a nova secretária de educação as conhece e também deve se preocupar com elas. Saberá, igualmente, neutralizar o assédio das empresas fornecedoras de serviços educacionais, geralmente interessadas na venda em larga escala de material didático de qualidade para lá de ruim, como as que tem atuado junto aos governos estaduais e municipais de São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo.

Fica, por fim, uma sugestão: que seja criada uma Coordenação ou Departamento encarregado de mapear as práticas inovadoras de ensino e aprendizagem nas escolas públicas, que as desenvolvem pelo comprometimento de seus professores, seus alunos e sua comunidade, na busca de uma educação que não seja sinônimo de simples adestramento e padronização.