sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O passado é pedagógico I


Os fatos que passo a narrar não são ficcionais. Os nomes é que foram trocados, para que ninguém se sinta molestado. Nada mais verdadeiro que o velho ditado: "recordar é viver".


Na cidade em que nasci fazer literatura dava muito prestígio social. Aquela merdinha de lugar tinha uma academia de letras e seus membros se reuniam uma vez por mês, num velho prédio que tinha um piso também velho de tábuas que rangiam. Lá, saboreavam quitutes e liam uns para os outros poemas, trechos de romances “em processo”, contos, trovinhas, essas coisas. Detalhe: não havia uma mulher no grupo e os caras vestiam ternos para ir às reuniões, que aconteciam na noite da última sexta-feira de cada mês.

A gente, criança, ficava na porta do prédio, na rua principal, vendo os vinte e cinco chegarem, às sete da noite. Chegavam a pé, vindo dos dois lados do quarteirão, às vezes em dois ou três. Depois que contávamos os últimos, íamos para a sessão do cinema, no prédio ao lado, assistir pela quinta ou sexta vez ao mesmo filme de faroeste. Era bom. A gente assoviava, batia os pés no assoalho de madeira acompanhando a música e torcia para a cavalaria acabar com os índios.

O cinema era quase de graça. Também o filme ficava em cartaz mais de um mês. A gente podia ir porque era baratinho. Todo mundo limpinho, cabelos penteados, sapatos engraxados. Assim era mais fácil passar pelo Xaveco, uma espécie de vigilante de menores, que não deixava entrar criança com idade menor que a indicada pela censura. Parêntese: Sim, era tempo de censura a filmes, livros e qualquer forma de arte considerada ameaçadora. Fecha parêntese. E lá dentro, no escuro, era a maior farra. Bolinhas de papel de bala, traques, até pó-de-mico uma vez soltaram no cinema. Tinha um lanterninha que de vez em quando saía puxando um pela orelha, debaixo de vaias.

Minha cidade, quando nasci há mais de meio século, não era tão pequena assim. Digo, era pequena, mas tinha certa arrogância de sociedade bem frequentada por gente de fora, que praticava esportes de elite, como o tênis. Nasci em uma estância hidromineral, com águas termais e certa tradição turística. No balneário, um hotel enorme e caro, ligado ao prédio dos banhos, domina o cenário. Era lá que meu pai trabalhava de porteiro. E minha mãe, de camareira, em outro hotel, mais modesto, frequentado por funcionários públicos do estado.

Sou de uma família pobre: salários baixos, oito bocas para alimentar e algum conformismo fizeram com que nos aboletássemos numa casa modesta, com vizinhança igual à gente mesmo. Escola pública, longas caminhadas, filhos começando a trabalhar cedo, com doze ou treze anos. Mãe fazia pé-de-moleque pra gente vender na rua: o sol quente, o caminho de poeira, os vizinhos comprando mais por solidariedade que por necessidade.

Quando entrei para a escola comecei a aprender coisas que me seguiriam por toda a vida. Não as coisas que os livros traziam, mas outras. Tive uma professora que achava uma ofensa eu ser pobre. Como é que pode, uma menina loira de olhos verdes, tipo europeu, com sobrenome italiano? Se fosse preta ou mulatinha, a gente entendia... Ah! Dona Lola, sempre mal-humorada. Um dia, fui a única da turma que, no ditado, escreveu “piscina” com o “sc”. As riquinhas, que usavam sapatos de couro, saias plissadas e blusas brancas de algodão, todas erraram. Só a pobretona da saia pregueada, blusa de poliéster e sapato de borracha acertou.

- Onde você aprendeu essa palavra, menina?
- Numa placa lá da piscina que a gente nada.
- É? E que piscina é essa?
- Do tênis clube.
- Sei... aquela da água verde-escuro?
- É sim senhora. A gente nada lá. E tem uma placa escrito assim: “No recinto da piscina, somente com roupa de banho”. Foi lá que eu aprendi.

Dona Lola estava debruçada sobre minha carteira, com os grandes olhos castanhos muito perto da minha cara. Fechou a cara por um segundo, mas logo se aprumou e jogou a cabeça para trás, gargalhando duas ou três vezes. Quando olhou novamente para a frente, estava séria.

- Quer dizer que você lê placas, né? Muito bem.

Eu tinha oito anos e não entendi o que era aquilo. Só mais tarde, juntando outros episódios da minha vida, com outros personagens, é que eu viria a vislumbrar um certo ódio, maior que o simples preconceito, que fazia as pessoas não aceitarem uma criança branca, loira, bonita e... pobre! Era um problema lidar com isso: os ricos e remediados não admitiam que eu fosse pobre e os pobres não me aceitavam porque eu parecia rica. Mas foi mais fácil conviver com a garotada que andava descalça, encatarrada e moleca, do que com as professoras, as coleguinhas ricas, os padres, os professores e todos os tipos que tinham algum prestígio na cidade.

No grupo escolar, aprendi que aluno pobre, no recreio, brincava de um lado do pátio sem invadir o outro lado, isso depois de comer o arroz-doce ralo e quase cru servido só para os que eram da “caixinha”, os que não tinham dinheiro para levar seu próprio lanche. Também as turmas eram divididas em adiantadas e atrasadas e por coincidência nas primeiras estavam os filhos dos ricos e nas segundas os filhos dos pobres. O meu caso era uma chateação, porque me destacava na leitura e na escrita, o que obrigou a diretora a me colocar na turma dos adiantados. Daí minha inadequação, que incomodava mais os outros que a mim mesma. No geral, as professoras que tive nos primeiros anos escolares foram inexpressivas: só Dona Lola me marcou, pelo preconceito declarado e assumido.


O irônico desta história é que Dona Lola não era branca. Hoje tenho a certeza de que, com seus lábios grossos e sua pele parda, minha tão sensível professora era mestiça.