segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Roubos

Durante as caminhadas pelo parque, a gente ouve muitos fragmentos de conversas. Um exercício interessante, depois que se apreende um pedaço do papo entre pessoas que caminham juntas, é tentar criar um contexto para o que se ouviu. Dá para rir um pouco, sabem? Além disso a gente se distrai enquanto faz, por obrigação para com a saúde, um exercício tão entediante. Uma vez ouvi trecho de conversa entre dois homens, ambos na faixa dos 40:

- Aí eu falei pra ela que tinha que mudar de posição, assim não dava...

Dei tratos à bola. Em que situação ele poderia ter dito isso a uma "ela"? Fiquei pensando em que posição estaria ela para ter que mudar... Seria posição ideológica? Profissional? Sexual? Vá saber!

Mas interessantes mesmo foram as palavras que uma amiga disse à outra, ambas na faixa dos 30, bem cuidadas, bonitas mesmo. Foi durante uma caminhada no balneário de Araxá:

- Aí eu falei pra ela que, na minha terra, a gente rouba o marido da amiga, mas nunca rouba a empregada!

Espantoso! Fiquei a pensar, primeiro, onde poderia ser a terra dessa moça. Que lugar interessante é esse, em que uma mulher pode roubar o marido da amiga e, provavelmente, não perderá a amizade dela? Como devem ser felizes os maridos das mulheres desse lugar! Devem viver trocando de lar, pulando de amiga em amiga, até voltar para a primeira mulher! Imaginei uma cidade qualquer, em Minas Gerais (pois as duas eram mineiras), em que as mulheres, sempre bem assistidas por excelentes empregadas domésticas, dedicavam seu tempo a roubar os maridos das amigas. Paraíso na terra?

Essas mulheres não precisam se preocupar com nada. Dizem orgulhosas umas para as outras:

- Minha empregada é ma-ra-vi-lho-sa! Lá em casa eu não sei onde fica guardada nem uma fronha!

E o que dizer das empregadas domésticas dessa cidade? Devem ser superempregadas, daquelas que, de manhã, chegam a tempo de colocar sobre a mesa um caprichado café-da-manhã. Depois limpam, arrumam, lavam e passam, cuidam das crianças, cozinham pratos fantásticos. Mantém a casa limpíssima, arrumadíssima, cheirosíssima. Tudo isso com um sorriso branquíssimo no rosto, os olhos iluminados de felicidade por trabalharem para patroa tão competente em roubar os maridos das amigas...


Essa empregada, quando chega o fim do dia, não aparenta cansaço. Se a patroa vai a um jantar romântico com um marido recém-roubado, tem disposição para ficar cuidando das crianças. Dedica à família para a qual trabalha um afeto inquestionável. Não reclama de cuidar sozinha da casa, não exige a contratação de uma faxineira. Não tem carteira assinada, porque a patroa disse que o desconto da previdência seria para ela um prejuízo. Sabe ler o básico para entender uma receita ou anotar um recado, conhece as operações aritméticas para fazer compras na mercearia do bairro. Uma santa!

E o salário da superempregada deve ser alto, à altura dos superserviços que presta: um salário-mínimo!

É óbvio que nenhuma das superempregadas tem marido. Tampouco a elas é permitido entrar na ciranda de roubo dos maridos das patroas. Senão, onde o mundo vai parar? Enquanto umas trocam de maridos como trocam de blusas bem passadas, outras tem que ficar cuidando da rotina doméstica e passando muito bem as blusas das patroas! Nesse quesito não se pode defender a igualdade de direitos, seria um absurdo!

Bem, de repente parei de imaginar, porque terminara a caminhada. Aquela frase ainda ecoava na minha mente, parecendo-me de uma crueldade inacreditável. Não era para ser novidade, pelo menos para mim, que vivo pesquisando como a literatura apreende as formas objetivas da realidade social. E uma dessas formas é a não-superação das relações de escravidão. A figura da empregada doméstica é a roupagem moderna dessas relações, mercadoria valiosa que não pode ser roubada.

Mas, acreditem, foi novidade pela desfaçatez com que a frase foi dita pela linda, e provavelmente rica, mulher que caminhava em uma manhã de domingo.

4 comentários:

Oksana disse...

Interessante que há poucos dias eu estava pensando nisso: a maior parte das pessoas que eu conheço que mantêm uma empregada doméstica (ou várias) não o faz pelos motivos alegados, que seriam a falta de tempo para o trabalho doméstico, para poder dedicar mais tempo a outras coisas, como a família e o lazer.
A verdade é que ter uma empregada doméstica, na maioria dos casos, é um luxo sustentado por pessoas que se consideram boas demais para o serviço da limpeza e da arrumação (mesmo que da sua própria casa!).
Tais pessoas, contaminadas por um orgulho inexplicável, consideram-se essencialmente diferentes daquelas que sustentam sorrisos do alto de suas vassouras...
Não tinha parado para pensar no ranço da escravidão, muito bem apontado pelo seu texto.
Beijos!

Unknown disse...

Muito bom mesmo! A relação é muito complexa. Puxando para o meu puxado, além da luta de classe dentro de casa, fica me martelando que eu contrato alguém para cuidar da minha casa enquanto trabalho, essa alguém contrata alguém para cuidar dos filhos delas, e por aí vai. E no final, todas pagamos o pato, que vai estar mal-assado, queimado ou mal cuidado.

Gilson disse...

É uma sociedade muito complexa mesmo. Fruto do escravismo, do elitismo e da desigualdade. Somos um poço de contradições, por isto, muitas vezes confusos.Sentimo-nos muitas estrangeiros na nossa terra, e como tais curtimos os nossos espetáculos, a nossa vida recheada de eventos,esta euforia inexplicável seguida de uma melancolia profunda e secular (dizem, herança portuguesa), esta falta de rumo.

Anônimo disse...

Esta não-superação das relações escravistas passa também pela cultura e educação que recebemos em casa (a escola nos oferece é ensino) que são passadas de geração para geração, pois não apenas as novelas de Manoel Carlos que nos expõem a tais conceitos. Não havendo a modificação desta "cultura caseira" para algo bem melhor, perpetuar-se-ão estas relações herdadas da época colonial e tristemente presentes ainda nas relações sociais contemporâneas.