terça-feira, 9 de março de 2010

Novos tempos

Achei muito interessante uma pesquisa de perfil do consumidor elaborada pela empresa DataPopular, especializada no que se denomina "mercado popular". Não, não se trata de mercadões de secos e molhados distribuídos Brasil afora. Popular, aqui, é o mercado consumidor formado pelas classes C e D, que agora parecem ter dinheiro para consumir.

Consumir o quê?... Tudo. De carro seminovo a TV de plasma. De brinquedo a home theater. De material escolar a churrasqueira. De móveis a calçados e bolsas. Tudo mesmo.

O DataPopular tem uma interessante apresentação, que você pode ver aqui. Nela já se delineia o perfil da classe popular: a que anda de busão, assiste ao programa do Ratinho, tem emprego informal, faz da ida ao supermercado um programa de toda a família, usa celular pré-pago, tem carro seminovo "zerado".

Esse pessoal se diferencia das classes A e B em alguns aspectos importantes: a) movimenta R$ 550 bilhões/ano; b) não tem curso superior; c) tem renda familiar de até R$ 3.500/mês; d) detém 71% do consumo. É um mercado maior do que o da Argentina, Chile e Uruguai juntos.

Impressionantes esses dados, não? Essas classes abrangem 88% da população brasileira. São mais ou menos 170 milhões de pessoas que antes estavam alijadas do mercado de consumo e hoje enchem os olhos do setor produtivo. São elas que esgotam estoques da linha branca de eletrodomésticos quando o IPI é reduzido, são elas que acabam com o sorvete e os ventiladores no inclemente verão brasileiro, são elas que levam para dentro de suas casas, pequenas e mal-acabadas, aparelhos de som e de TV sofisticados.

É para elas que muita gente das classes A e B torce o nariz, quando censura a empregada doméstica por comprar um home theather melhor do que o da patroa ou um liquidificador de marca mais cara do que aquele da casa em que trabalha. Diz que esse povinho não sabe consumir, não pensa no futuro, compra televisão cara para assistir Ratinho e Sílvio Santos. Um absurdo.

Mal sabe a gente das classes A e B que o DataPopular identificou entre o alto e a base da pirâmide social (na sempre em moda terminologia do "márquetingue") algumas diferenças de fundo, cruciais para a gente entender essa nova onda do consumo dos últimos quatro anos. 40% dessa população são de analfabetos funcionais, quer dizer, sabem assinar o nome, mas tem capacidade de leitura reduzida e não dominam as operações aritméticas fundamentais.

Diz a pesquisa que o pessoal "de baixo" construiu várias redes sociais baseadas na solidariedade. Todo mundo ajuda todo mundo e espera ser ajudado em momentos de dificuldade. A família, a igreja e a comunidade formam essa rede social, a base de apoio das pessoas das classes C e D. Por exemplo, nas comunidades 44% cuidam de criança do vizinho que sai para o trabalho, contra 6,5% da classe A. Nas classes populares, a reciprocidade é um princípio estruturante da vida social. Se uma vizinha leva para a outra uma travessa com um bolo feito em casa, a travessa nunca será devolvida vazia, sempre haverá dentro dela uma retribuição. Esse é um exemplo com coisas miúdas do cotidiano, mas esse princípio está presente também nos momentos de aflição por doença ou dívida.

Estou romantizando a visão das classes C e D? Não. Quando vi os dados da pesquisa, vieram-me à memória cenas de um tempo que já vivi, lembranças de uma rede de solidariedade vivenciada há muitos anos. Recordei-me também das tentativas, já na cidade grande, de construir boas relações de vizinhança e bases comunitárias de convivência. Mas a intolerância com a diversidade cultural típica de Brasília, aliada ao urbanismo que compele as pessoas ao isolamento, impediu que qualquer iniciativa vingasse. Quando deixei Brasília para passar alguns anos em Belo Horizonte, levei um susto, quando constatei, no meio da mineirada, o quanto eu me tornara arredia a vizinhos, depois de 19 anos na capital federal. Tive de reaprender essa convivência.

De qualquer modo, saber que as classes C e D praticam o consumo com o objetivo inclusivo, como mostra a pesquisa do DataPopular, é alvissareiro. Torço para que o maior acesso a bens de consumo não contribua para eliminar o espírito que caracteriza a convivência dentro das comunidades populares. Que se mantenham e, mais, se ampliem as redes de solidariedade.

Em resumo: os pobres estão comprando mais. Além de estarem entrando para a universidade, tendo mais empregos e demonstrando mais confiança no futuro. Dá para entender por que a mídia brasileira tenta, todos os dias, desqualificar os programas sociais do governo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Resta saber se esta onda de consumo não destruirá o espírito de solidariedade da classe D em, se principalmente, no caso de uma crise financeira, não atirará este segmento, infelizmente, de volta a mais abjeta miséria...