quinta-feira, 23 de setembro de 2010

O dia em que São Paulo parou V (e último!)

Fabiana se espreguiça. Vira a cabeça para o relógio de cabeceira e, de repente, dá um pulo!

- Dez horas! Não pode ser! Como dormi até tão tarde?!

Todo dia, conta com o barulho do prédio em construção, ao lado do seu, para acordar. A peãozada começa às sete horas, infalivelmente. O canteiro de obras é o seu despertador de todas as manhãs, mas hoje, inexplicavelmente, não faz barulho. Por isso perdeu o primeiro horário na faculdade. Todos já saíram: seu pai, sua mãe e seu irmão. Nem a empregada está.

Apronta-se correndo, come uma fruta e se manda, no carro popular que ganhou de presente do pai por ter passado no vestibular para o curso de Direito. Hoje é dia de reunião do grupo de estudos. Seis meninos e meninas, primeiranistas, vão finalizar um manifesto a ser publicado na internet. O segundo, aliás. O primeiro teve boa repercussão, angariou 600 adesões. Trata da necessidade de preservar São Paulo para os paulistas. É a luta em que Fabiana está engajada e à qual dedica boa parte de seu tempo na faculdade.

No caminho para a faculdade, Fabiana nota que o prédio em construção está vazio, mas as ruas tem mais carros. Há menos ônibus circulando. Precisa parar para abastecer o carro, mas não há ninguém trabalhando no posto de gasolina perto de sua casa. Decide seguir até outro. No trajeto costumeiro, nota também a ausência dos velhinhos japoneses que costumam ocupar a praça pela manhã.

No segundo posto de gasolina, há somente um frentista para atender às quatro bombas. Não dá para esperar que a fila de carros ande. Fabiana segue em frente, com o ponteirinho do marcador de gasolina indicando o tanque na reserva.

- Paciência, dá pra chegar na faculdade. Abasteço depois.

Enfia o fone no ouvido e segue, ouvindo suas músicas favoritas no i-pod. No caminho, nota que o trânsito está mais fluido, que há pouca gente na rua, que quase não há ônibus circulando, que as barraquinhas dos ambulantes estão vazias.

- Ah, que beleza! É assim que esta cidade deveria ser todos os dias!

Na faculdade, percebe um dia atípico: há pouquíssimos estudantes circulando, embora seja horário de intervalo. Nem acredita que chegou em vinte minutos! Mas onde está todo mundo? Olha em volta e acha tudo muito quieto. Segue para a sala da reunião do grupo de estudos, percebe corredores mais vazios e até mesmo algumas salas de aula.

Na sala de reuniões, estão apenas o Lincoln e a Mércia, fazendo a revisão da minuta do manifesto.

- Bom dia, gente, desculpa o atraso. Perdi a hora hoje. Ué, cadê os outros?

- O Décio ligou - diz Mércia - avisando que não pode vir. Parece que o bisavô dele, que é bem velhinho, sumiu. A família toda está procurando por ele.

- Ah, o velho deve ser gagá e não consegue voltar pra casa. Aposto que vai aparecer logo. Se bem que não é aconselhável se perder em São Paulo... E os outros? Ninguém mais ligou?

- Não... Nem a Sandra, nem o Rodolfo, nem a Fernanda. Ninguém deu notícia.

Lincoln inicia uma conversa esclarecedora para Fabiana:

- Vocês viram como as ruas estão? Ouvi no rádio, enquanto vinha para cá, que sumiu muita gente... A cidade só não parou porque todo mundo tirou os carros da garagem. Eu mesmo não respeitei o rodízio, depois de ficar quase uma hora esperando o ônibus voltei pra casa e peguei o carro.

- Ih, lá no meu bairro tá a maior confusão! - completa Mércia - A padaria não abriu hoje, os porteiros dos prédios sumiram, não tem policiamento...

- Ué, até aqui, na facu, tá faltando muita gente. Vocês viram? Tem sala de aula vazia, vários professores e muitos alunos não apareceram. Os funcionários da limpeza também sumiram, até a moça da cantina...

- Nossa! - Fabiana se espanta - O que será que está acontecendo? Vou sintonizar uma rádio de notícias, pra gente saber melhor.

O noticiário das 11 dá uma idéia do caos instalado na cidade. Tudo continua funcionando, mas muito precariamente. Hospitais, escolas, empresas, indústrias. O prejuízo vai ser enorme, diz o apresentador do jornal, porque atividades que não podem parar estão ameaçadas.

- Uau! Mas por que sumiu tanta gente? Como? Pra onde foram?

Neste momento, passa pela mente de Fabiana um pensamento que ela logo repele. "Não pode ser." Na noite anterior, antes de dormir, fizera uma releitura do primeiro manifesto. Estava muito brando, muito enquadrado no politicamente correto. O grupo havia tratado todos os migrantes pela régua da igualdade. Na verdade, era mais para não chocar, para não parecerem preconceituosos. Defenderam a exclusão de todos os migrantes, sem importar a origem. Mas depois das 600 adesões, Fabiana se sentia mais encorajada a assumir que o alvo eram apenas os nordestinos. Era contra a permanência deles na cidade que a garota queria dirigir o manifesto. Ao apagar a luz, pensou: "Amanhã vou propor que o segundo manifesto seja específico para os imigrantes nordestinos. Eles é que atrapalham o progresso de São Paulo, não os outros..."

O mesmo pensamento teima em voltar à mente de Fabiana. "Será possível?..." Na noite anterior, feliz com a repercussão do primeiro manifesto, dormira tão feliz! Desejara com todas as suas forças que a grandiosa metrópole se livrasse dos migrantes que impediam seu progresso. Dormira pensando nisso, desejando, desejando, desejando!

- Ah! Mas não era pra sumir todos! Só os nordestinos! - exclama quase sem querer.

Lincoln e Mércia levam um susto. Estão preocupados, na revisão do segundo manifesto, em não deixar transparecer um ataque específico a esta ou aquela origem dos migrantes. Agora, a exclamação de Fabiana lhes deixa claro o preconceito, a real motivação do primeiro manifesto, que ela redigira sozinha, laboriosamente disfarçada pela seleção cuidadosa das palavras.

Entreolham-se. Intimamente decidem se querem continuar a publicar manifestos em defesa de "São Paulo para os paulistas", sob a liderança de Fabiana. Mércia lembra que, se seu bisavô italiano fosse vivo, também estaria sumido agora, como o bisavô de Décio. Aonde teria ido parar toda essa gente desaparecida? Lincoln deixa aflorar o incômodo que sentira desde o início do contato com Fabiana. Então era para isso que entrara no curso de Direito? Sem dizer nada, os dois entregam a minuta a Fabiana e saem da sala.

Fabiana fica ali, absorta com o noticiário do rádio no i-pod. A notícia agora, da editoria internacional, é o estranho aparecimento de milhares de velhinhos em várias cidades japonesas... Mas a menina de classe média, estudante de direito em uma faculdade tradicional, nem se toca. Está feliz porque alguma força mágica realizou seu grande desejo.



2 comentários:

Anônimo disse...

Legal... o "americano" (Colorado) que leu a matéria, segundo o marcador de visitantes do blog, sou eu :P. Contribuindo com a globalização da Bel :D
Bjs.
Lucas.

Luciana disse...

Brilhante, Bel! Você conseguiu me prender desde o primeiro até o último. Vc como sempre se superando a cada post!

Um grande abraço com saudades suas...

Lu