terça-feira, 17 de maio de 2011

Ainda sobre o "livro do MEC"

- Professora, eu gosto muito das aulas de português.
- Que bom! Mas...?
- Bem, professora, essas coisas que a senhora ensina, de regência, de concordância, e tal...
- Que que tem?
- Bem, quando eu volto lá pro interior, pra fazenda do meu pai, sabe, eu não posso ficar falando do jeito que a senhora ensina aqui.
- Por que?
- Porque se eu falar com os filhos dos vaqueiros, meus amigos desde que era menino, que eu prefiro ir AO cinema A assistir À missa, eles vão falar que eu fiquei metido a besta, só porque vim estudar na cidade.
- Como assim?
- Lá, a gente tem de falar que prefere ir no cinema do que assistir missa. Senão eles pegam no pé.
- É isso. (A professora agora assumia seu ar professoral.) Você tem de saber que há situações em que pode falar errado.
- Posso?
- Pode.
- Certeza?
- Se você quiser. (A professora agora está desconfiada.) Mas também pode aproveitar e ensinar seus amigos a falarem de acordo com a norma culta que você aprende aqui na escola.
- Ah! Não, eu prefiro falar do jeito deles. Sabe como é, né? Senão eles perdem a confiança em mim.
- É uma escolha sua. Mas você sabe que, por exemplo, quando for fazer uma entrevista para emprego, não deve falar como fala quando está com seus amigos, não sabe?
- Sei sim, professora. Mas eu não vou ter esse problema não, porque eu nunca vou procurar emprego.
- Ah, não?
- Não. Eu vou é ser o dono da fazenda, quando meu pai passar ela pra mim.
- Verdade?
- Verdade. E aí eu vou fazer questão de, quando falar com eles, falar certinho, usando a norma culta.
- Mas por que?
- Ué, professora, pra marcar a diferença: patrão é patrão, né?
- É, vejo que você aprendeu bem o que significa usar a língua como instrumento de poder.
- É, graças às aulas de português.

* * *

Acredite, esse diálogo não é ficcional. Ele aconteceu mesmo, na sala de aula de uma escola pública que recebe alunos do interior de Minas. Se a professora acreditava que todos os alunos devem receber a mesma educação, sem discriminação de classe social, raça ou religião, ela deve ter se considerado bem sucedida no trabalho de ensinar aos alunos como lidar com as variações linguísticas. De fato, o aluno evidenciou a apreensão do conteúdo, não é verdade? O posterior questionamento de sua disposição em reproduzir práticas de dominação, fazendo da norma culta um instrumento para isso, também deve ter ocorrido. Essa professora teve, com certeza, tempo para levá-lo à reflexão e imagino que o tenha feito.

Pois bem. A professora ministrou um conteúdo previsto nos Parâmetros Curriculares Nacionais, os famosos PCNs, que é o da "variação linguística". Trata-se de fenômeno corriqueiro, mas que não é sistematizado pelos gramáticos, ciosos de seu papel de conservar, preservar e defender a língua (aqui restrita à concepção de norma culta, uma das suas variações) da corrupção e da degeneração que a fala cotidiana lhe provoca.

Pronto. É esse o campo fértil para a falsa polêmica que tomou a mídia brasileira nos últimos dias, levando-a a acusar o MEC de distribuir um livro didático que "ensina ao aluno que ele pode cometer erros de concordância." A mídia parece pensar que as escolas tem de ensinar apenas a norma culta, sonegando ao aluno o direito de saber que existem diferentes falares, diferentes registros para uma mesma e única língua. E que o registro culto é apenas um deles. Daí o escândalo, com direito à carranca do William (Homer Simpson) Bonner e beicinho da Fátima Bernardes em horário nobre. E na Band, o repórter msn(*) chega ao ponto de entrevistar um professor de gramática para concursos públicos. É muito amadorismo!

Nessa polêmica, faço minha a posição, bem como os argumentos, do linguista Marcos Bagno, que você pode ler AQUI. E também essas reflexões, do Miguel do Rosário, cujo mérito é nos lembrar da existência de grandes poetas como Patativa do Assaré e Luiz Gonzaga, que tão bem valorizaram outro registro de nossa língua, que não a tal norma culta.

Na falta de algo mais promissor a que se agarrar para atacar o governo - e também na tentativa de neutralizar uma possível candidatura à prefeitura de São Paulo -, nossa máfia midiática volta as baterias contra um livro didático. Mas sua munição tem o mesmo efeito de um traque: só barulho, nenhuma credibilidade.

Enquanto isso, leio no Correio Braziliense de hoje que, na Comissão de Educação do Senado, o oportunista Cristovam aproveita para ajudar a minar o governo por cuja base foi eleito. Mau caratismo, má fé ou ingenuidade?

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(*) muito sem noção!

Um comentário:

alma de poeta disse...

O preconceito linguístico exclui e estigmatiza uma comunidade. Toda essa polêmica sobre o livro didático é , na verdade, preconceito sócioeconômico. Os ardorosos combatentes da língua viva- a que o povo usa- nunca tiveram interesse pela educação e têm a charlatanice de afimar que o ensino vai degringolar se tal livro for adotado. Simplesmente ridículo. Sou profª de Português e faço questão de dar voz aos meus alunos da periferia , valorizando sua cultura que trazem para a sala de aula.
cristina